Quando fomos punidos pelo inverno

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Tema 7: Dias de neve

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Dia um

Os únicos sons a cortar o silêncio da noite eram o fogo crepitando na lareira e o riscar frenético de uma pena sobre um pergaminho amarelado. Antes, todo e qualquer silêncio na vida do rei era preenchida por barulhos infantis: uma risada espontânea, um choro após joelhos ralados, uma cantiga de ninar.

Mas essa sinfonia já não fazia mais parte da vida dele há muito tempo.

Fit soube que não estava mais sozinho antes mesmo de ver o ar tremeluzindo em sua visão periférica. Era como se um sussurro crescesse no pé do ouvido, baixinho, uma risada fraca, e logo sentiu a típica onda de calor divino preencher a pequena torre solitária que o rei feiticeiro usava para estudos.

— Achei que tinha entendido minhas ordens — resmungou, sem olhar para trás, o corpo inclinado por cima do tomo Naturali, os olhos focados como se o texto fosse a coisa mais interessante do mundo, embora o feitiço descrito na página – para fazer as plantas crescerem – fosse relativamente simples, coisa de criança, e imensamente entediante.

— E eu achei que tinha entendido: não recebo ordens de você. — A voz mais irritante do mundo soou, risonha, ecoando conforme o calor gradualmente aumentava, afastando em ondas o frio que a tempestade de neve havia trazido.

O feiticeiro suspirou, a contragosto, e deu um único puxão para tirar o cachecol que tinha enrolado ao redor do pescoço. Pequenas gotículas de suor surgiram na careca, e ele olhou para trás a tempo de ver a criatura dona da voz materializar-se no centro do cômodo, explodindo em luz.

O surgimento do anjo era sempre uma explosão de calor divino.

— O que quer? — Fit ergueu-se da cadeira, irritado, amargurado e, acima de tudo: sentindo o ódio pelo anjo rastejando de pouco a pouco de volta ao hall de sentimentos em seu peito. — Eu não quero ver você.

O anjo apenas ergueu uma sobrancelha grossa e escura. Os cabelos caiam como uma cascata negra por cima dos ombros, em contraste absoluto com as asas de penas brancas recolhidas para perto do corpo.

— Não me agrada estar aqui também, honestamente.

— Mas...? — Fit incentivou, cansado da maneira enigmática com a qual Pac falava; fazia ele se sentir estúpido, pequeno, apenas um humano com magia que não era nem um grão de areia perto da divindade angelical à sua frente.

— Mas eu sigo ordens. Não as suas, claro — o anjo caminhou despreocupadamente até a lareira. Ergueu o dedo e fez um sinal de círculo no ar, lento, mas o suficiente para aumentar as chamas na lareira e fazer o calor no quarto diminuir ao mesmo tempo, deixando o local em uma temperatura agradável.

Fit trincou os dentes. Era cansativo ter um anjo da guarda, especialmente porque os dois só estavam juntos por uma infelicidade do destino: ambos estavam sendo punidos pela morte daquele que, em comum, deviam proteger. E agora estavam presos um ao outro, uma aliança mágica que causava desconforto e ódio e brigas, mas que não podia ser desfeita.

— Se você precisa ficar comigo, não pode ao menos ficar, sei lá, invisível? — Fit sentou-se de volta na cadeira acolchoada onde estava antes, e Pac assumiu um assento no ar – literalmente, apenas cruzou as pernas como se, de repente, um banco que não pudesse ser visto estivesse materializado atrás dele. As asas moviam-se de leve, como se fossem organismos vivos, um coração batendo fora do corpo.

O rei queria arrancar cada uma das penas daquelas asas.

— Não enquanto estamos sozinhos. É... uma punição. Para mim, para você. Não importa — deu de ombros, a capa que eram suas madeixas escuras balançando em sincronia. — Finja que não estou aqui.

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⏰ Última atualização: Jul 21 ⏰

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