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Capítulo Oito

  
Wangji

O banco de couro do carro rangeu quando me mexi um pouco para lançar outro olhar sub-reptício para Xiao Zhan. Era difícil acreditar que ele ter tropeçado em mim não fosse o destino. Devia haver milhões de pessoas vivendo nesta cidade, e de todas as pessoas que poderiam ter sido, tinha que ser aquela que eu tinha visto diariamente nos últimos anos, a única pessoa que se deu ao trabalho de parar e falar comigo. Bem, eu não – uma gárgula. Não havia como ele saber que dentro daquela concha de pedra havia uma pessoa viva.
— Você está bem?
Assustei-me. Eu tinha que parar de olhar para ele. Ele não apenas parou quando a maioria das pessoas passou, mas também foi gentil. Ele até me deu seu café.
Essa gentileza acabaria se ele decidisse que eu não era uma pessoa sã, e pessoas sãs não olhavam para outras pessoas sem dizer nada. Abaixei meu olhar para minhas mãos e flexionei meus dedos. Mãos e dedos. Deus, senti falta deles durante os vinte e cinco anos em que não era nada além de uma consciência. E pude cheirar novamente. Eu poderia ver e ouvir quando era uma gárgula, mas sentia falta de cheirar.
Mesmo no carro, havia tantos aromas diferentes: o couro dos bancos, um ambientador em forma de árvore pendurado no espelho retrovisor que exalava um aroma de pinho, e mais fraco, mas definitivamente presente, um aroma picante que só poderia vir de Xiao Zhan. Sua colônia, talvez? Eu queria chegar mais perto. Eu queria enterrar meu rosto em seu pescoço e respirar mais, mas é claro que não podia, ou estaria me aventurando no caminho de parecer um lunático novamente. Às vezes, eu me perguntava se era, e simplesmente não sabia disso. Como eu saberia quando cruzei aquela linha invisível?
— Wangji ?
Eu não tinha respondido a sua pergunta. Eu estava bem? Eu não estava bem há centenas de anos, mas essa não era uma resposta que eu pudesse dar. — Wǒ hěn hǎo, xièxiè.
— Ah, ótimo. Agora, eu estava falando em chinês.
Para minha surpresa, Xiao Zhan sorriu. — Eu sabia que você era chinês.
Xiao Zhan parecia triste. — Sua família está na China? Eu poderia ajudá-lo a voltar para casa, se é disso que precisa?
Lar! Campos e florestas, o cheiro da cevada após a colheita, o som do rio que ameaçava transbordar após uma chuva particularmente forte. Mamãe e papai conversando em vozes suaves, do jeito que só duas pessoas que ainda estavam muito apaixonadas depois de muitos anos conseguiam. Jingyi e eu brigando, dois irmãos que se amavam, mas às vezes achavam quase impossível gostar um do outro. E Wei Ying. Lindo Wei Ying. Seu cabelo preto refletindo a luz e sua pele pálida pontilhada de sardas. Sardas que cobriam seu corpo também, incluindo aquela que eu sempre gostei de beijar na parte interna da coxa. Depois havia a maneira como ele sorria. Seu toque quando ele passou as mãos sobre meu corpo, nenhum lugar a salvo da exploração, assim como nenhuma parte de seu corpo permaneceu a salvo do meu.
Isso era casa.
Exceto... nada disso existia mais. Tudo se foi, tudo perdido no tempo. — Minha família está toda morta. Não tenho motivo para voltar para casa.
Os dedos de Xiao Zhan apertaram reflexivamente ao redor do volante, e ele pareceu sem palavras por um momento. — Oh! Sinto muito por ouvir isso. — Ele tirou os olhos da estrada para virar a cabeça e sorrir. — Vamos resolver alguma coisa.
Será que vamos? Virei a cabeça para olhar pela janela, as luzes borradas das casas e dos postes por onde passávamos mais resultado das lágrimas que ameaçavam derramar do que da velocidade em que viajávamos. Se ao menos Xiao Zhan pudesse usar uma varinha mágica e deixar tudo bem, mas a única maneira de fazer isso seria se apaixonando por mim. Amor de verdade  realmente, não apenas as promessas vazias de muitos homens cujos nomes eu mal conseguia lembrar.
O carro diminuiu a velocidade e parou em frente a uma casa geminada. Fiquei olhando para ele enquanto Xiao Zhan desligava o motor e desapertava o cinto de segurança. Não sei o que esperava: ser capaz de dizer alguma coisa sobre o homem que a possuía, do lado de fora, talvez? Mas era apenas uma casa, uma casa quase idêntica a todas as outras da rua. A porta ao meu lado se abriu, Xiao Zhan parado ali e agitando o braço em um gesto expansivo.
— Aqui estamos. Lar Doce Lar. — Ele lançou um olhar depreciativo para a placa de ‘Vende-se’ embutido no gramado de seu jardim da frente. — Por enquanto, pelo menos.
Meus membros ainda estavam trêmulos quando saí do carro. Era estranho andar, a sensação de movimento me dava uma sensação de vertigem quando eu estava tão acostumado a ficar enraizado em um só lugar. Segui Xiao Zhan cautelosamente pelo caminho, parando atrás dele enquanto ele vasculhava seu bolso, provavelmente em busca de uma chave.
— Noite agradável!
Tanto Xiao Zhan quanto eu demos um pulo quando o rosto de uma senhora idosa apareceu por cima da cerca do jardim vizinho.
Xiao Zhan riu, recuperando a chave de onde a havia deixado cair no chão. — Você me fez pular, Sra. Featherstone. O que está fazendo aqui fora a esta hora da noite?
Seu olhar passou por mim e desviei o olhar, me encolhendo ainda mais em meu capuz, na tentativa de me tornar invisível. Ela fungou.
— Alguém tem que ficar de olho na vizinhança. Especialmente agora que aquele garoto legal, Calvin, não está mais por perto. Sua casa fica vazia o dia todo enquanto você está no trabalho. Eu odiaria que você fosse assaltado enquanto eu estava sentada assistindo Home and Away.
O sorriso de Xiao Zhan tornou-se decididamente tenso.
— Bem, isso é muito atencioso da sua parte, mas honestamente, não se exponha. Tenho um alarme contra roubo. Agora, se me der licença.
— Quem é seu amigo?
Xiao Zhan só conseguiu colocar a chave na fechadura. Ele fez uma pausa, respondendo sem olhar na direção da Sra. Featherstone. — Este é Wangji .
Murmurei um “olá”, um silêncio constrangedor pairando no ar enquanto a vizinha esperava por mais informações, enquanto Xiao Zhan claramente não tinha intenção de fornecê-las. Embora eu supusesse que não havia muito que ele pudesse dizer. ‘Este é Wangji , encontrei-o em semicoma na rua e pensei que seria uma boa ideia convidá-lo para minha casa’, dificilmente iria tranquilizar alguém.
Fiquei aliviado quando Xiao Zhan pôs fim ao impasse silencioso, abrindo a porta e me conduzindo para dentro. Encontrei-me em um corredor, Xiao Zhan fechando a porta e digitando o código do alarme contra roubo para impedi-lo de apitar antes de jogar as chaves em uma pequena mesa coberta de correspondência e tirar o casaco. — Desculpe pela Sra. Featherstone. Ela só gosta de se interessar pelas idas e vindas de todos na rua.
— Está bem.
Xiao Zhan ficou parado por um momento, como se não tivesse certeza do que fazer a seguir. Então ele pareceu se dar uma sacudida mental. Ele abriu uma porta à direita, acendeu a luz e gesticulou para que eu entrasse. — Fique confortável na sala de estar. Vou ligar o aquecimento para que possamos descongelar você. Vou dar uma olhada nas delícias culinárias que posso oferecer para você comer enquanto estiver aqui.
Ele desapareceu no corredor e lutei contra a vontade de segui-lo, entrando na sala que ele havia indicado. Era uma sala grande, decorada com bom gosto em diferentes tons de vermelho e creme. Meu olhar foi imediatamente atraído para o armário de madeira escura que ocupava quase todo o comprimento de uma parede. Porém, não foi o armário em si que despertou meu interesse. Eram todas as fotos que ele abrigava.
Fui até ficar na frente dele, minha atenção foi atraída por Xiao Zhan abraçando outro homem. Eles pareciam felizes juntos, o que parecia estar em desacordo com todas as histórias que ele contara. Mas então, imaginei que as pessoas não precisavam descarregar sua felicidade. E os tempos difíceis nunca pareceriam tão ruins a menos que contrastassem diretamente com tempos que haviam sido melhores. Peguei outra foto. Era uma foto do dia do casamento, os dois em ternos elegantes com botões combinando. O sorriso de Xiao Zhan era enorme e ele parecia não ter nenhuma preocupação no mundo.
— Esse é Calvin.
Pulei, quase deixando cair a foto de susto, as palavras “eu sei” quase escapando. Eu precisava ter cuidado. Eu sabia coisas sobre Xiao Zhan que não deveria saber. Se eu acidentalmente deixasse escapar alguma coisa, isso levantaria muitas questões. Nada disso eu seria capaz de responder.
Xiao Zhan apareceu ao meu lado. — Desculpe. Achei que você tinha me ouvido entrar. Não queria assustá-lo.
— Estou apenas... nervoso. — Segurei a foto. — Deveria ser eu me desculpando. Não tive a intenção de meter o nariz em coisas que não são da minha conta.
O olhar de Xiao Zhan caiu para a foto, sua boca torcendo.
— Calvin é meu marido. — Ele fez uma careta. — Ex-marido. Ainda não me acostumei a dizer isso. Era a isso que a Sra. Featherstone se referia. Ela era uma grande fã de Calvin. Acho que ela está desapontada por ele ter se mudado em vez de mim. É por isso que a casa está à venda. Compramos juntos, então precisamos vendê-la e dividir o lucro. Só que o mercado imobiliário não está bom neste momento, por isso estamos presos neste estranho limbo onde não podemos realmente seguir em frente até que seja vendida.
Coloquei a foto de volta na prateleira. Eu me senti mal por fazer Xiao Zhan reviver tudo de novo quando já tinha ouvido tudo isso antes. — Lamento que seu casamento não tenha dado certo.
O suspiro de Xiao Zhan foi longo e prolongado. — Eu também. De qualquer forma — ele forçou um sorriso — não sei por que ainda tenho as fotos em exposição. — Ele correu o olhar pela prateleira, sua expressão um tanto melancólica. — Acho que sou apenas um fanático por punição. Obviamente gosto de me torturar. E... — Ele deu uma risada envergonhada.
— Ainda estou falando sobre isso.
Ele atravessou a sala para fechar as cortinas. — Eu provavelmente deveria ter avisado que eu era gay antes de você dizer sim para vir aqui. — Seu rosto estava tenso quando ele se virou e ele parecia não saber o que fazer com as mãos. — Caso você esteja preocupado, eu não o convidei com nenhuma intenção a não ser para que você pudesse se aquecer e comer alguma coisa. Prometo.
— Você acha que sou uma prostituta?
Ele balançou sua cabeça. — Eu...
— Você pode ser honesto.
Ele respirou fundo. — Tudo o que sei é que você precisava de ajuda e ninguém mais parecia estar preparado para ajudá-la. Não é da minha conta o que faz para sobreviver.
— Não sou prostituta, nem viciado. — Era importante para mim que ele soubesse disso. Talvez eu não fosse capaz de dizer a ele de onde apareci ou por que estava em tão mau estado físico, mas poderia dizer a ele o que não era sem que houvesse qualquer repercussão.
Ele olhou para mim e olhei de volta. Finalmente, ele assentiu, um sorriso voltando ao seu rosto. — Acredito em você. Você tem um rosto honesto.
Sorri de volta para ele, algo tentador que capturou minha respiração suspensa no ar entre nós.
O momento foi quebrado quando algo escuro se lançou sobre o encosto do sofá. Tropecei para trás, pronto para correr, e apenas as mãos de Xiao Zhan pousaram em meus ombros para me firmar, me impedindo de fazer isso.
— É apenas Napoleão. Não tenha medo.
— Napoleão?
Xiao Zhan me virou gentilmente em direção ao sofá. — Meu gato. E ele é ainda mais idiota do que a maioria dos gatos. É por isso que o chamei de Napoleão. Ele é pequeno, mas ainda consegue se pavonear como se fosse o dono do lugar.
Olhei para o gato preto, seus olhos verdes olhando para mim. Ele era realmente pequeno, mas não parecia nem um pouco preocupado com o fato de haver um estranho na casa. Na verdade, ele parecia apenas curioso.
— Você nunca... — Parei. Eu ia dizer que Xiao Zhan nunca me contou que tinha um gato. Ele não tinha. Ele nunca mencionou isso nenhuma vez em todas aquelas horas conversando comigo. Era o gato dele? Ou seria outra coisa que ele e Calvin compartilharam?
A testa de Xiao Zhan franziu.
— Eu nunca... o quê?
Balancei a cabeça, envolvendo meus braços em uma tentativa de me aquecer.
A preocupação surgiu no rosto de Xiao Zhan. — Esqueci o banho. Vou preparar um banho para você. Nada melhor que um banho para se aquecer.

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