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Capítulo Nove

Xiao Zhan

O que você deveria fazer enquanto um completo estranho estava no seu banho? Eu tinha quase certeza de que a resposta não era andar de um lado para o outro e pensar constantemente sobre ele, mas era exatamente isso que eu estava fazendo. Quaisquer que fossem as circunstâncias que levaram Wangji à situação em que o encontrei – e pela expressão em seus olhos não achei que ele fosse me contar – isso não mudava o fato de que ele era simplesmente um dos homens mais deslumbrantes que já vi.
Isso não significava que eu iria me aproveitar dele de alguma forma. Fui cem por cento honesto quando disse a ele que não o trouxe de volta para nenhum outro propósito a não ser ajudá-lo. Mas eu não era cego e, de repente, percebi quanto tempo fazia desde que tive intimidade com alguém. Os divórcios tendiam a matar a sua libido, ou pelo menos matou a minha.
Só que minha libido parecia ter aumentado, estimulada pelos pensamentos do jovem que atualmente se deliciava com meu banho. Napoleão bateu a cabeça na minha panturrilha em uma tentativa de chamar a atenção e eu o peguei no colo. — O que você acha, Napoleão? Estou perdendo a cabeça ao trazê-lo aqui? E o que devo fazer com ele depois que ele tomar banho e comer alguma coisa? Eu deveria simplesmente jogá-lo de volta na rua? Parece loucura quando tenho um quarto vago, não é? Uma noite não vai doer nada. Quero dizer, é tarde. Eu teria que ser um monstro para não levar isso em conta. Onde ele vai dormir por aqui? A senhora Featherstone mandará castrá-lo se o encontrar perto de seus gerânios.
Olhei para Napoleão e ele piscou lentamente. Revirei os olhos para ele. — Você é de muita ajuda. Quando você vai começar a conversar para me dar alguns conselhos?
Abaixei-o no chão enquanto passos silenciosos soavam nas escadas, Wangji apareceu na porta alguns momentos depois com o roupão branco e fofo que eu havia deixado para ele. Ele parou na porta para espiar pela cozinha. — Com quem estava falando?
Merda! Ele tinha me ouvido. Eu só esperava que ele não tivesse ouvido o que eu estava dizendo. — Ninguém.
Napoleão escolheu aquele momento para soltar um miado melancólico, como se estivesse determinado a me denunciar por ser um mentiroso. Resolvi levá-lo para o abrigo e trocá-lo por um gato silencioso, que não discutisse comigo. — OK! Eu estava conversando com Napoleão. Ele pode ser muito conversador às vezes. Não há nada de errado em conversar com seu gato, certo? Seria rude não o fazer. Você deveria me ver conversando com a gárgula no campus. É quando as pessoas pensam que eu realmente perdi o controle. Talvez eu apenas prefira falar com coisas que não podem ser respondidas. — Eu estava nervoso e estava fazendo o que sempre fazia quando me sentia constrangido: estava deixando minha língua ficar bem à frente do meu cérebro. Enxugando as mãos suadas na frente da calça, abri a porta da geladeira e fingi examinar seu conteúdo. — Você é alérgico a alguma coisa?
— Não que eu saiba. — Houve uma longa pausa. — Você fala com uma gárgula?
Porra! Por que eu disse isso a ele? Eu poderia muito bem ter usado um chapéu com “Estou meio louco” estampado na frente. — Ele é uma gárgula muito legal.
“Nada melhor, Xiao Zhan, seu idiota absoluto”
— Como você sabe?
— Bem... — Deixei a porta da geladeira fechar, sem saber o que ela continha do que quando a abri. Wangji estava sentado à mesa da cozinha, com o queixo apoiado na mão. Ele parecia muito melhor depois do banho, sua pele pálida agora exibindo um brilho rosado.
— A maioria das pessoas julga as gárgulas pela sua aparência. Eles pensam que são maus, mas é exatamente o oposto. Uma de suas principais funções é afastar os maus espíritos. É por isso que muitas vezes são posicionados fora de igrejas e catedrais.
— Então... na sua opinião, eles são uma coisa boa?
Em vez de pensar que eu era uma aberração, Wangji parecia genuinamente interessado no assunto.
— Historicamente falando, sim. As pessoas sempre temeram o que não entendem. É por isso que muitas mulheres na Idade Média foram perseguidas por serem bruxas. Porque fizeram coisas que a maioria da população não entendia. Olhando agora de uma perspectiva moderna, muitas delas foram tentativas de medicina precoce. O que podemos pensar hoje em dia como fitoterapia. Quero dizer, eles eram muito malucos e mergulhados na religião. Coisas como acreditar que a lã embebida em azeite do Monte das Oliveiras poderia estancar o sangue quando combinada com a história de Longinus, um homem famoso por ter sido curado da sua cegueira pelo sangue de Cristo. E também havia amuletos de proteção, pele de foca para repelir raios e partes do corpo de abutre usadas como amuleto.
Os dedos de Wangji se contraíram quando pousaram sobre a mesa. — Você acredita que alguma bruxa era real?
Ele estava muito quieto, quase como se algo na minha resposta realmente importasse para ele.
Respondi honestamente.
— Não sei. Sou apenas um historiador. Certamente há casos tão famosos que ainda hoje são comentados. Veja Mãe Shipton, por exemplo. — Fiz uma pausa. Eu tinha esquecido por um momento que Wangji era chinês. O nome provavelmente não significava nada para ele. — Seu nome verdadeiro era Ursula Southeil e ela nasceu no século XV. Diziam que ela era tão terrivelmente feia que você deve se perguntar se o título de bruxa não teria sido dado a ela de qualquer maneira, mesmo que ela tivesse vivido uma vida piedosa. A lenda diz que sua mãe teve um caso com o Diabo e como resultado concebeu Ursula. E, claro, há versões da história que afirmam que a própria mãe de Ursula era uma bruxa que convocou o Diabo para esse propósito específico. A fitoterapia era apenas uma das cordas de seu arco. As profecias eram sua grande atração, e você deve presumir que, se o nome dela sobreviveu até hoje, as pessoas acreditaram nelas na época e nos anos seguintes. Knaresborough tem toda uma indústria turística construída em torno dela. Você já ouviu falar do poço petrificante?
Wangji balançou a cabeça.
— É um ótimo exemplo de como o que antes se pensava ser bruxaria pode na verdade ser explicado pela ciência. Objetos deixados na água com alto teor mineral basicamente se transformam em pedra por meio de um processo de evaporação e deposição. As pessoas penduram todos os tipos de objetos nas nascentes perto da caverna da Mãe Shipton, onde ela morava, ursinhos de pelúcia, meias, o que você quiser. É uma visão e tanto se tiver a oportunidade de visitar.
— Você acha que ela era uma bruxa?
Dei de ombros. — Quem sabe? Alguns dizem que as profecias foram feitas após sua morte. Mas deve haver alguma razão pela qual ela era tão famosa na época que até mesmo o rei Henrique VIII sabia quem ela era. Pelo menos era sobre isso que ele estava falando quando escreveu uma carta ao duque de Norfolk em 1537 e se referiu à Bruxa de York.
Parei repentinamente. O que eu estava fazendo? Eu deveria oferecer comida e abrigo a Wangji, não o tratar como um de meus alunos e dar-lhe uma palestra completa sobre história. Deus sabe quanto tempo se passou desde a última vez que ele comeu. Ele provavelmente estava morrendo de fome.
Afastando-me para esconder o rubor que sem dúvida iluminava meu rosto como um farol, abri a geladeira novamente. — Não tenho feito compras esta semana, então posso ter lhe dado falsas esperanças de algo decente quando me ofereci para alimentá-lo. Posso fazer uma omelete ou pedir uma pizza?
— Uma omelete está bem.
— Sim? — Virei-me para ver o aceno de Wangji. Cogumelos, cebola, pimentão e queijo, ok?
Outro aceno de cabeça. Comecei a prepará-la, extraindo todos os ingredientes de que precisava, batendo os ovos, cortando os legumes e ralando o queijo. Pelo menos uma omelete estava ao meu alcance sem que eu servisse algo que não parecesse deslocado em um crematório. Também seria mais fácil abordar o assunto que eu queria falar enquanto minhas mãos estavam ocupadas fazendo outra coisa. — E eu estava pensando, sendo tão tarde, que depois de comer, você provavelmente deveria passar a noite aqui. O que acha?
Dei uma rápida olhada na direção de Wangji para discernir sua reação, confiando que os ovos e vegetais que coloquei na frigideira não fariam nada muito drástico nos poucos segundos em que os deixei sozinhos. A expressão em seu rosto estava a meio caminho entre o desconforto e o alívio. — Não quero abusar.
Voltei minha atenção para a panela, nada tendo escapado. — Não é problema. Tenho um quarto vago e a cama já está feita, então... — Não havia nada que eu pudesse fazer se ele insistisse em ir embora, e isso realmente não deveria importar tanto, mas por algum motivo importava. Eu não queria que ele vagasse pelas ruas. Não esta noite, de qualquer maneira. Eu dormiria melhor sabendo que ele estava seguro, o que era uma reação estranha para alguém que conheci há pouco mais de uma hora.
— Obrigado. Eu apreciaria isso.
O alívio pesava em meu peito. — Tenho que trabalhar cedo amanhã. — Agora, por que eu disse isso? Parecia que eu estava dando a ele ordens de marcha ao amanhecer. Mas então, qual era a alternativa: deixá-lo ficar na minha casa o dia todo — sozinho e sem supervisão? Minha boca cuidou disso antes mesmo que meu cérebro começasse a analisar as possíveis ramificações. — Você pode ficar aqui amanhã também, se quiser?
— Posso?
A nota de cautela na voz de Wangji me fez virar para encará-lo. — Só se quiser? Entendo se não quiser. Você pode querer seguir seu caminho. Nesse caso, posso deixá-lo onde quiser, no caminho para o trabalho. Mas, se não... — Suspeitei que meu encolher de ombros não foi nem de longe tão casual quanto eu esperava. Fiz um gesto ao redor da cozinha.
— Minha casa está à sua disposição.
— Isso é muita confiança da sua parte.
Joguei o queijo em cima da omelete, deixando-o derreter antes de dobrar a parte superior e colocá-la em um prato. Era confiar em mim. No entanto, parecia a coisa certa a fazer. Peguei os talheres e entreguei ambos a Wangji com um floreio que dizia culinária cordon bleu em vez de ovos, queijo e vegetais aquecidos. Eu esperava que ele fosse direto ao ponto, que comesse como alguém que não sabia de onde viria a próxima refeição, mas ele comeu lenta e deliberadamente, como se estivesse saboreando cada garfada. Observei-o até perceber o que estava fazendo, minhas bochechas esquentando novamente.
Levantando-me de um salto, me ocupei em colocar minha cozinha de volta em ordem, não que houvesse muito o que fazer. Nem eu conseguia fazer tanta bagunça enquanto preparava uma omelete. Wangji ainda não havia me respondido sobre seus planos para o dia seguinte. Provavelmente seria melhor se ele decidisse partir logo pela manhã. As coisas só seriam mais estranhas se ele tivesse passado o dia na minha casa e depois eu o expulsasse.
— Então... devo te acordar de manhã ou não?
Wangji parou com o garfo a meio caminho da boca. — Tem certeza de que não se importa se eu ficar aqui amanhã?
Lancei-lhe um sorriso rápido. — O mínimo que posso fazer quando divago com você sobre bruxas. Prometo que nem sempre sou tão estranho.
Wangji deu um sorriso pálido. — É um assunto interessante.
Era. Assim como ele. Ele tomou banho e comeu em minha casa, mas tudo que eu sabia sobre ele era seu nome, que não tinha família e que era francês. Era uma base estranha para confiar em alguém, mas por alguma razão eu confiava. Absolutamente e completamente.

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