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Epílogo

Três meses depois

Wangji

Eu adorava ver Xiao Zhan dormir, mas também adorava tudo nele. Xiao Zhan. Wei Ying. Os dois haviam se confundido e fiquei surpreso por nunca ter conseguido ver isso antes. Eles podiam não parecer semelhantes, mas em espírito, no que tornava uma pessoa quem eles eram, os dois homens eram virtualmente indistinguíveis.
Seus olhos se abriram e sorri quando seu olhar encontrou o meu. — Pude ouvi-lo pensando. Foi muito alto.
Aconcheguei-me mais perto, abandonando meu travesseiro pelo dele até que nossos narizes se tocassem em nossa maneira habitual de deitarmos juntos. Levantei meus dedos para passá-los suavemente sobre sua bochecha, até a ruga que apareceu quando seus lábios se curvaram ao meu toque. — Você sonhou?
Xiao Zhan balançou a cabeça. Ele poderia não ter admitido isso, mas eu sabia que ele estava tão assustado quanto eu de que seu subconsciente pudesse estar determinado a preencher as lacunas, que pudesse repetir o que quer que tivesse acontecido nas mãos de Sanren depois que ela me transformou em uma gárgula. Quanto mais o tempo passava, mais relaxados nós dois ficávamos pensando que isso não iria acontecer.
Nenhum de nós precisava saber que métodos distorcidos ela poderia ter usado para expurgar o gay. Xiao Zhan se mexeu ligeiramente para dar um beijo na minha testa.
— Nada de ruim de qualquer maneira. E você?
Meus sonhos eram esperados – sonhos de estar de volta à gárgula, onde esta parte do dia, a parte em que eu podia deitar ao lado de Xiao Zhan e tocá-lo, era na verdade o sonho. Eles me deixaram com a sensação de que não tinha certeza do que era real e do que não era.
— Eles estão ficando menos frequentes.
— Bom.
Sorri quando a porta do quarto se abriu e segundos depois um projétil preto e peludo se lançou do chão e fez o possível para ficar no meio de nós. Enterrei meus dedos no pelo de Napoleão, fazendo cócegas embaixo do queixo dele do jeito que ele gostava.
— Estamos atrasados para lhe dar café da manhã? — Recebi um miado indignado por esse comentário. — Você precisa começar a pegar ratos. Há muitos deles por aí.
Havia. Xiao Zhan pediu demissão, aproveitando o período de férias devido para garantir que não teria que voltar ao campus, e então nos mudamos para um vilarejo nos arredores de Manchester, nos mudando para uma casa de campo idílica com um riacho no fundo do jardim. Era tranquilo, a casa mais próxima ficava a mais de dois quilômetros de distância. Xiao Zhan temia que seria muito tranquilo para mim quando eu passasse bastante tempo longe das pessoas, mas eu não precisava de pessoas. Tudo que eu precisava era de liberdade – e dele. Talvez eu mudasse de ideia mais tarde e tive que prometer a ele que, se isso acontecesse, ele seria o primeiro a saber, mas, por enquanto, estávamos ambos satisfeitos.
Demorou um pouco mais para Napoleão se adaptar. Ele parecia confuso com a nítida falta de concreto e também não tinha muita certeza sobre o riacho, mas pelo menos paramos de nos preocupar com a possibilidade de ele tentar encontrar o caminho de volta para Sheffield.
— Preciso ligar para minha mãe hoje.
Fiz uma careta. — Dê-me um aviso primeiro para que eu possa ter certeza de que não estou aqui.
Xiao Zhan riu. — Pra onde você vai?
— Vou caminhar até a aldeia.
— Não precisamos de nada. Fomos às compras ontem.
— Vou encontrar alguma coisa. — Levantei a cabeça para olhar para Napoleão, que, tendo decidido que o café da manhã não seria servido, estava enroscado entre nós.
— Você quer um pouco de atum, certo, Napoleão?
Ele deu um miado longo e prolongado, seguido por dois miados mais curtos, e nós dois rimos. — Veja. É uma emergência.
— Minha mãe não é tão ruim assim.
— Ela me odeia.
— Não é verdade.
Dei uma olhada nele. — Ela me culpa por você ter saído de Sheffield, o que tecnicamente ela está certa. É minha culpa.
A testa de Xiao Zhan franziu.
— Como você resolveu isso?
— Você ainda estaria lá se eu não tivesse entrado em sua vida.
Os olhos de Xiao Zhan suavizaram. — E eu ainda estaria infeliz. Eu ainda estaria me culpando por não ter tido sucesso em um casamento que nunca daria certo. E eu ainda estaria sendo repreendido diariamente por uma certa reitora determinada a tornar minha vida miserável.
— Ela tinha seus usos.
Xiao Zhan riu. — Sim, acho que ela tinha. Ela provavelmente ainda está se recuperando de ter sido vista no campus sem o cabelo preso para trás.
Nós dois ficamos em silêncio, até que Xiao Zhan o quebrou. — E minha mãe não é tão ruim assim.
— Ela é melhor que a sua outra. Vou te dar isso.
Um sorriso irônico apareceu nos lábios de Xiao Zhan por alguns segundos.
— Ela ficará mais feliz quando eu voltar ao trabalho. Estou convencido de que ela pensa que estou inventando o novo emprego na Universidade de Manchester. — Ele se apoiou em um cotovelo. — Ei! Pare de parecer triste. Ainda temos duas semanas até então.
Na verdade, provavelmente eu parecia triste. A falta de emprego de Xiao Zhan significava que eu o tive só para mim durante meses, mas sempre soube que isso não duraria para sempre. Afinal, nós dois vivíamos das economias dele. Não era como se eu tivesse algo a acrescentar ao relacionamento.
Como sempre, Xiao Zhan leu minha mente. — Para!
— Parar o quê?
— Sentir que você não é suficiente. Você é mais que suficiente. Dissemos que íamos apenas viver, lembre-se. Concordei em não me culpar pelo passado, e você concordou em não se sentir mal pelas circunstâncias que lhe restaram, que estavam além do seu controle.
Xiao Zhan estava se referindo ao fato de que, depois que o burburinho inicial de liberdade passou, percebemos que havia muitos obstáculos práticos em nossa vida juntos. Principalmente o fato de eu não ter nenhuma identificação. Nenhuma identificação significava nenhuma carteira de motorista ou passaporte, e mesmo algo tão simples como conseguir um emprego seria quase impossível.
— Não quero que se sinta preso comigo. Não quando vou impedi-lo de fazer tantas coisas como sair de férias e... — Parei quando vi a expressão de Xiao Zhan. — Por que você está sorrindo? Estou falando sério.
Ele se inclinou mais perto até que seus lábios estavam a apenas um fio de cabelo dos meus. — Não dou a mínima para nenhuma dessas coisas. Nós vamos resolver isso. Tudo o que importa é que eu te amo.
Nunca me cansaria dessas palavras e, por mais que as ouvisse, elas ainda causavam a mesma explosão de euforia em meu peito. — Também te amo. Para todo o sempre.
Xiao Zhan se afastou um pouco para que eu pudesse ver seu rosto. — E nenhuma palavra mais verdadeira jamais foi dita.
Nossos lábios se encontraram em um beijo apaixonado, infelizmente arruinado pela monstruosidade peluda decidindo que, afinal, ele precisava mais de café da manhã do que de dormir. Beijar não era a mesma coisa quando acompanhado de uma boca cheia de pelos.

• * * *

Xiao Zhan espalhou as folhas de papel sobre a mesa da cozinha. — Você tem certeza disso?
Quando abordei pela primeira vez o assunto dele olhando para o passado e tentando descobrir o que havia acontecido com minha família, foi com a expectativa de que ele não conseguisse, porque isso foi há muito tempo. Não foi esse o caso. Havíamos decidido que ele não compartilharia nada até que sua pesquisa chegasse ao inevitável beco sem saída.
Peguei um dos pedaços de papel e olhei para ele, mas apesar de Xiao Zhan estar me ensinando a ler e escrever, eu ainda não tinha progredido muito além do nível “Corra, corra”. Além disso, a caligrafia de Xiao Zhan era um rabisco confuso. Mesmo que eu fosse alfabetizado, era discutível se eu seria capaz de entender isso. Coloquei o papel de volta na mesa e balancei a cabeça. — Preciso saber. Mesmo que sejam coisas que não quero ouvir, prefiro saber. Foi o não saber que me deixou louco todos esses anos.
Xiao Zhan me lançou um olhar avaliador. — Basta ter em mente que tive que examinar uma enorme quantidade de informações para construir qualquer tipo de imagem. É como... — Ele franziu a testa. — Não sei, acho... é como um prato que caiu e eu o colei novamente. Haverá peças que não consegui encontrar, algumas que estão faltando.
Olhei fixamente para ele até que ele entendeu a dica.
— OK. Aqui vai. Aqui está o que encontrei. — Ele limpou a garganta. — O pedaço de terra sobre o qual você me contou permaneceu na família Lan por mais alguns séculos, o que significaria que seu irmão, Jingyi, deve ter se casado e constituído família própria, e isso foi transmitido através de seus parentes... seus parentes. Não consegui encontrar nenhuma informação específica sobre ele. Houve uma menção a um certo, Jingyi, que morreu velho, mas o ano está nebuloso, então não posso garantir que tenha sido seu irmão.
Senti-me um pouco melhor saber que Antoine continuou vivo, que meu desaparecimento não mudou muito a vida dele. Eu esperava que ele estivesse feliz. — E os meus pais?
Xiao Zhan largou o pedaço de papel e pegou outro, olhando por cima dele. — Você disse que o nome do seu pai era Qingzheng?
Ele estava protelando. Eu podia ver isso em seu rosto.
— Apenas me diga.
— Todas as informações apontam para a sua morte em 1572. Há uma lápide que corresponde ao nome Lan Qingzheng. Consegui um contato para me enviar fotos, mas está muito desbotado. É difícil distinguir qualquer coisa, exceto o nome e o ano.
Recostei-me e parei um momento para digerir essa informação. — Isso foi apenas um ano depois que desapareci. Ele esteve doente... antes. Pensávamos que ele estava melhorando, mas talvez...
Xiao Zhan assentiu.
— Acho que sua mãe se casou novamente. Havia registros de uma Lan Fei e, depois de uma certa data, os únicos registros que consegui encontrar mencionavam uma Nie Fei. Não vejo nenhuma razão para ela ter mudado de nome, a menos que se casasse novamente.
Nem eu. Era um pensamento estranho considerar minha mãe superando a morte de meu pai a ponto de se casar novamente, mas talvez ela precisasse. Talvez tenha sido assim que eles sobreviveram e conseguiram manter a terra. Eu não estava lá, então dificilmente poderia julgá-la por isso. — Você sabe quando ela morreu?
Xiao Zhan balançou a cabeça. — Como eu disse, faltam peças. Essa pode ter sido uma Fei diferente. Você reconhece o nome Nie?
Vasculhei meu cérebro, mas não consegui me lembrar de ninguém em Yunmeng que tivesse esse sobrenome. Se minha mãe tivesse se casado novamente, provavelmente seria com um estranho.
— Não.
— Você provavelmente esperava que eu descobrisse mais.
— Não achei que você fosse encontrar alguma coisa.
— Tem mais uma coisa. — Levantei uma sobrancelha em questão, Xiao Zhan continuou. — Ainda há Lans morando em Yunmeng e alguns em Gusu. Eu diria que são seus parentes. Se você quisesse, poderíamos contatá-los.
Olhei para ele. — E dizer o quê? Olá, você não me conhece, mas é provável que eu seja seu tio-avô, mesmo sendo mais novo que você. — Balancei minha cabeça.
— Não. Eu só queria algum tipo de encerramento. Saber que toda a minha família não morreu. Eu tenho isso. — Apoiei minha cabeça na minha mão.
— E você?
Xiao Zhan mexeu-se desconfortavelmente na cadeira. — Quanto a mim?
Estendi a mão por cima da mesa e peguei sua mão.
— Conheço você. Não há como não estar curioso o suficiente para investigar Sanren e Langjiao. — E embora eu não tenha dito o nome dele, sabia que teria sido impossível pesquisar as duas mulheres sem incluir Wei Ying na equação.
— É ruim? É por isso que não quer dizer nada?
— Isso é...
Dei um aperto tranquilizador em sua mão quando ele ficou em silêncio. — Você não precisa me contar. — Apontei para os pedaços de papel. — Poderíamos simplesmente queimar tudo isso e esquecer que eles existiram.
Xiao Zhan passou a mão pelo cabelo. — Você está sugerindo que eu guarde segredos de você?
— Não. Sim. Não sei. Alguns segredos são bons, certo?
Ele estreitou os olhos para mim. — Como o quê?
— Bem... como se eu tivesse convidado alguém para vir e ficar conosco, por quem eu sabia que você não ficaria exatamente muito feliz, e resolvi deixar isso para mais perto da hora antes de contar a você, para que não fique muito irritado com isso.
— Quem?
— Gloria.
O rosto de Xiao Zhan disse tudo.
— Devemos muito a ela.
— Eu sei, mas não podemos lhe dever nossa gratidão de longe?
Ele mudou de ideia. Eu sabia que ele faria isso. — Poderia ser pior. Poderia ser Haiukan.
Xiao Zhan fez uma careta.
— Isso é verdade.
Não houve como consertar esse relacionamento. Seria difícil para Xiao Zhan superar o conhecimento de que Haiukan estava preparado para fazer o que fosse necessário para se livrar de Sanren e, claro, como  estava alheio a tudo o que havia acontecido, não havia como explicar isso para ele. No que dizia respeito a Haiukan, Xiao Zhan estava demasiado consumido pela sua nova relação para ter tempo para velhos amigos, e Xiao Zhan ficou feliz por o deixar acreditar nisso. Talvez um dia ele encontrasse uma maneira de perdoá-lo, uma vez que as memórias não estivessem tão cruas, mas ainda não tínhamos chegado a esse ponto. Acenei com a mão para o pedaço de papel.
— Vamos. Acabe com isso. Podemos conversar sobre Gloria mais tarde.
Xiao Zhan suspirou. — Wei Ying, ele... eu... — Ele nunca tinha certeza de qual pronome usar quando se referia a Wei Ying. — Ele desapareceu, não muito depois do encontro que vocês tiveram. Ou ele conseguiu fugir ou ela o matou.
Nós dois ficamos em silêncio, provavelmente pensando que a última opção seria muito mais provável.
— E Sanren?
Os lábios de Xiao Zhan se curvaram nos cantos. — Seu corpo físico morreu de peste, segundo todos os relatos. Parece que nem mesmo a magia consegue manter a Peste Negra longe de sua porta.
— Bom. É uma pena que ela não tenha permanecido morta.
Xiao Zhan assentiu concordando. — Não consegui encontrar nada sobre Langjiao. Talvez ela tenha ido embora quando Sanren morreu.
— Talvez.
Levantei-me da mesa e me apertei no colo de Xiao Zhan, passando meus braços em volta de seu pescoço e olhando em seus olhos.
— O passado acabou.
— É isso?
Pensei em todas as coisas que suportei, nos anos de tormento e em todas aquelas tentativas fracassadas de amor, na vaga esperança de que o homem do momento pudesse ser o único a quebrar a maldição, sem saber que todos eles seriam o mesmo homem. O momento e as circunstâncias nunca foram adequados, principalmente graças à intromissão constante de Sanren. Mas aqui com Xiao Zhan, seguro em seus braços, tudo parecia uma lembrança distante, como algo que tivesse acontecido com outra pessoa.
— Sim, é. — Abaixei meus lábios nos dele. — Só existe o futuro, e isso vai ser lindo.
O aceno de Xiao Zhan foi longo e ponderado, seu sorriso o melhor tônico que alguém poderia pedir.
— Você tem razão. Será. Porque somos nós juntos e nosso amor.

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                🖤 Fim🖤
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Muito obrigada por lerem ❤️

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