Capítulo 10

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      Dores por todos os músculos do meu corpo. Vontade de não sair da cama e dormir até meio dia. E um sorriso patético no meu rosto sardento.

      Me sinto em estado de plenitude, em seu mais autêntico significado. Parece que ainda sinto os toques de Roman em todas as minhas partes erógenas, e se fecho os olhos, o imagino apertando meus seios e me beijando de língua enquanto sou cavalgada.

      Demoro alguns minutos para ouvir uma voz chata dentro de mim me lembrando que um novo dia começou, com suas preocupações, desafios e muita dança. Solto o ar por entre os lábios aborrecida quando me lembro que vou começar a ser avaliada pelo diretor Tchernenko.

      Se o papel de estrela do espetáculo não fôsse tão importante para mim e se eu não quisesse derrubar a Gabi, colocaria um ponto final em tudo. Mas meu orgulho de bailarina é mais importante. Eu quero dançar o papel principal.

      Dormi nua e só acordei porque meu corpo começou a esfriar. Como não vou mais conseguir dormir e tenho algumas tarefas pra fazer antes de ir para a companhia, abro as portas duplas do meu armário cor de mogno e puxo um collant regata cor de vinho com um par de polainas da mesma tonalidade. Visto a malha e ando em direção à área de serviço.

      Minhas gatinhas vem ao meu encontro. Serena, a mais carinhosa, ronrona ao se esfregar nas minhas pernas e tenta abaixar uma das minhas polainas. Dou um sorriso e a carrego, encostando meu nariz em seu focinho.

      — Gatinha travessa.

      Carrego também Vênus e levo as duas para a cozinha a fim de colocá-las em frente aos seus potinhos de ração, e enquanto comem, volto para a área de serviço.

      Lavo minha roupa no tanquinho que comprei de uma vizinha há um mês. Aqui é o único lugar onde posso me alongar e dançar, por ter maior espaço. As luzes do prédio em frente estão apagadas ainda, afinal são só cinco e meia, e ser madrugadora, nessas horas, é vantajoso. Não preciso ter medo de ser vista quase pelada por algum vizinho.

      Ponho um pendrive na caixa de som e avanço para a faixa nº 6, que é uma coreografia criada por um bailarino tcheco, e que tem partes de acrobacia, saltos ginásticos e várias pirouettes en dedan. Mesmo sentindo meus músculos gritando, minha alma se transporta quando danço; ela alcança um estado que minha professora chamava de transcendência.

      A música me seduz e corre por todo meu interior, me dando impulso e confiança pra dar saltos perfeitos que se transformam em rolamentos no chão azulejado. Sinto frenesi, êxtase e dor, como se eu estivesse desnudando meu corpo diante de um público invisível.

      Se estendo meu braço em direção ao infinito, parece que posso tocar uma daquelas poucas estrelas que aos poucos se escondem a fim de que o sol possa surgir e ensinar um novo passo de dança aos homens. E se toco meu rosto com o dorso da mão e cruzo meus braços sobre meu peito fechando os olhos, posso sentir a vida se renovando ao meu redor e me fazendo recordar que só quem dança é feliz. 

      Mais um salto com as pernas esticadas em noventa graus no ar e um rolamento no chão, e termino meu ensaio olhando para o alto, em direção às estrelas que sempre me fazem companhia quando estou triste.

      Me ergo do chão olhando confusa para os lados, e ofegando ao respirar. 

      Se a dança é a mais sublime das artes, também é perigosa, porque você pode se esquecer de quem é. E pode não se adaptar à mudança abrupta da sensação de estar num palco dançando para a realidade tão cinza dos mortais que não querem saber o que você sente. 

      Mas você tem que voltar. Eu sempre faço o caminho de volta.

      Olho para o cesto de roupa cheio de peças sujas, suspirando entediada por ter que bancar a Cinderela serviçal. Que merda não ter uma lavanderia aqui perto.

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⏰ Última atualização: Sep 01 ⏰

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