Rachadura

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Minha boca é enorme. Simplesmente enorme. Basta que veja a fina linha que se estende de uma orelha a outra, pouco a pouco se abrindo, revelando o brilho róseo de minhas gengivas. E meus dentes, que há muito se entortaram e se perfuraram, resultaram na deformidade caótica que agora ninguém vê: lâminas terríveis a brotar do escuro.

Terminando de se abrir, já lenta e inconstante por sua limitação natural, logo podem ser ouvidos sons de estalo e rangidos, que entram por seus ouvidos e lhe agonizam a mente. São as muitas engrenagens que tenho na mandíbula, fazendo cada vez mais força; girando mais agressivamente a cada segundo, até o crec súbito e inconfundível levar suas mãos às orelhas.

De repente leve, de repente livre, minha boca continua a se abrir. Meu queixo parece despencar, pois eu o sinto bater contra meu pescoço; o sangue pesa em minha cabeça à medida que a jogo para trás, com meu próprio nariz projetando sua sombra contra meus olhos. O que eu sinto além da dor, e acima de qualquer medo que me consome, é a ansiedade. Ansiedade pois eu sei o que tenho abaixo da maxila; por saber exatamente o que estará entre meus dentes quando finalmente minha boca se fechar, como dois poderosos ímãs se chocando um contra o outro. E então, estou imóvel.

Como cordas esticadas ao máximo, os ossos da minha cabeça tremem e se partem aos poucos, como minúsculos cacos de vidro que vão se soltando de uma janela quebrada. Lágrimas quentes descem pelas minhas bochechas, salpicadas com o sangue mais escuro que eu já vira em minha vida; mas isso não pode me impedir. Eu preciso olhar para baixo; preciso ver o que tenho em minha boca.

São meus olhos, apenas isso. Meus olhos olhando para mim, implorando piedade, ou sentindo piedade por mim. Vejo minha própria cabeça entre meus dentes, e quando finalmente as engrenagens quebram e as cordas se rompem, minha boca se fecha. Meu crânio é esmagado como se não passasse de um simples ovo. Superfície dura se torna mole, e fragmentos pegajosos recobrem todo o meu corpo. Grânulos cerebrais descem por minha garganta, e o cheiro do sangue, misturado com líquidos estranhos, me provocam a pior das ânsias de vômito.

Sempre me foi satisfatório imaginar isso: minha cabeça sendo esmagada. Começou com uma simples prensa hidráulica; dessas usadas para confeccionar peças industriais. Eu me imaginava pondo a cabeça numa dessas, apertando o botão, e sentindo-a ser reduzida a pó. Sim, claro que doeria muito. No início, no instante em que a plataforma de aço encostasse contra a minha cabeça, eu sentiria uma pressão terrível. Mas não demoraria, e logo viria o alívio; o alívio de sentir a fonte de todo o mal se espatifando, simplesmente quebrando, deixando de existir; em definitivo desaparecer. Crec. Um simples barulho, que pra mim seria tão alto quanto libertador.

De repente voltando o tronco para trás, percebo meu reflexo na janela. O vidro está salpicado com gotas; o tempo está nublado, e um homem de bicicleta e capa de chuva passa pela minha rua. Um tempo lindo. Perfeito para ficar em casa, assistir a um filme. Seria bom.

***

Desço as escadas com passos ligeiros, como sempre.

- Menina! - diz minha mãe, uma mulher gentil e rechonchuda - Já te falei tantas vezes pra não correr por essa escada!

Ele está sentado à mesa também, claro. Meu padrasto. Lendo jornal e tomando um café, sorrindo para mim. Desejo bom dia, me sento e passo manteiga no pão. Minha mãe também se senta, ainda com um grande prato na mão, pondo diante de nós os biscoitos salgados que acabara de assar na manteiga. Sim, esse é um momento feliz. A união familiar, estar juntos ao redor de uma mesa, apreciando a companhia uns dos outros não apenas por se amarem, mas também por compararmos tais companhias com aquelas com as quais temos de lidar todos os dias. As caras fechadas, os chefes soberbos, os colegas que, de forma tão nojenta, nos tratam bem, quando sabemos nos detratarem pelas costas. Como é bom termos uma família, um berço, um porto seguro para o qual podemos retornar.

Mentes em SobrecargaOnde histórias criam vida. Descubra agora