Um urubu

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Já faz duas semanas que me mudei. Não hei de me alongar aqui sobre onde eu morava, com quem eu morava, se dependiam de mim ou, pior, se eu dependia de alguém. Fato é que eu precisava do meu espaço, e cá estou. As paredes tem suas falhas, não são lisas como imaginava. Diversos fios de tinta denunciam a falta de cuidado do dono da casa, que deixou as gotas escorrerem aos montes. Muitas manchas continuam no chão, mostrando que não bastava simplesmente "dar uma boa esfregada com vassoura e sabão". E o vaso sanitário, ainda que sua descarga funcione muito bem, costuma entupir vez ou outra.

De qualquer forma, e daí? Era isso o que eu queria, certo? Enfrentar meus próprios problemas sozinho, pois são eles frutos da minha vida e de nenhuma outra. De seu caldo matarei minha sede, e com suas sementes cultivarei meu jardim. Mas sempre que olho para a parede, ou melhor, para as três grandes prateleiras brancas e bem parafusadas, um desconforto me faz roer as unhas e desviar o olhar.

É um espelho que reflete minha alma, simples assim. Os livros que antes ficavam empilhados no chão, agora na vertical, já não parecem tão numerosos quanto eu acreditava, ou me fizeram acreditar. Poderia preencher a primeira prateleira de ponta a ponta, sim; mas é melhor preencher cada uma das prateleiras com alguns poucos livros, e disfarçar os espaços vazios com pequenos Budas e vasos de plantas.

Por Deus! Não seria tão mais belo ver minhas prateleiras recheadas de livros? Receber amigos sob meu teto e balançar positivamente a cabeça, quando perguntado se já havia lido cada uma das obras que exponho com tanto orgulho? E então exibir um sorriso amarelo, balançar negativamente a cabeça e dizer algo como "Não é pra tanto... Qualquer um pode ler".

Alguns poderiam dizer que basta comprar uma grande quantidade e alinhá-la nas prateleiras, mas isso seria uma farsa tão ridícula.

Duas semanas se passaram. Tiro da boca o dedo cuja unha estou roendo, e assaltado por uma boa ideia, resolvo entrar num site de trocas e vendas de produtos usados. Eu pesquiso por doações de livros, e encontro tantas opções. Um ex-universitário que está abrindo mão de seus livros didáticos, um homem doando sua coleção de gibis, um aspirante a escritor praticamente implorando para que alguém tome seus livros e os leia

E um homem do Recreio dos Bandeirantes, anunciando a coleção completa de um certo autor britânico. "Não é minha essa coleção", dissera ele, "Meu pai morreu há cerca de um mês. Não tenho espaço na minha casa onde eu possa deixar seus livros. Não conheço ninguém que os queira; mas não posso jogá-los no lixo; isso seria tão triste, não seria?

Eu respondo que sim! Digo a ele que um livro usado é um livro repleto de vida; digo que um livro amarelado e recheado de anotações possui mais valor do que um livro novo e que acabara de sair de uma loja. Minto ao lhe dizer que restauro e coleciono livros antigos; minto ao afirmar que possuo contato com um sebo, e que lá cuidamos dessas preciosidades que os outros largam como se não significasse nada, mas que são uma parte da vida daqueles que os leram e que se foram.

Não houve emoção da parte do homem. Ele me passou o endereço e disse que os livros já estão com o porteiro, e que basta eu ir lá para pegá-los. Pesquisei a coleção na internet. Portugal, 1947.

Eu sorrio para a minha parede. Imagino a segunda prateleira totalmente preenchida com a coleção completa desse escritor britânico, que durante décadas e décadas esteve ali, acompanhando seu dono nos bons e maus momentos; envelhecendo junto dele conforme o tempo ia avançando, lento e ignorante sobre os cabelos brancos do homem, e o amarelecimento das folhas de seus livros. E para que tudo isso? Qual foi o destino final dessa obra tão rara, cujas dezessete edições só devem estar completas num punhado de prateleiras ao redor do mundo? Vir a mim, é claro.

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