Ponto fixo

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Efeito de Troxler é um fenômeno de percepção visual. Caracteriza-se pela fixação do olhar num ponto fixo que faz o que está na visão periférica desaparecer.

*

Após exalar uma fumaça categórica com meu cigarro, posso fantasiar com o sentimento da libertação do qual se valem todos os fumantes. A evaporação das ideias, o hábito de afastar tudo para o lado como se guardasse os problemas em uma gaveta; eu fumo, esperando atingir tal efeito.

O dia lá fora está chuvoso, e agora olhando para minha janela salpicada com suas gotas, vejo a luz insipiente dos postes de luz invadir minha sala, cujo escuro propositado não me ajudou a dormir, e tão pouco a ignorar o que está no meu corredor.

Eu apago o cigarro ao me lembrar da infância; e depois de tantos anos me recordando de seus acontecimentos – Aqueles que presenciei sozinho -, passei a me perguntar se aconteceram de fato, ou se não passaram do fruto da mente fértil de uma criança.

Lembro-me de quando passei um final de semana na casa de meus avós, e tive de dormir sozinho em um quarto velho com paredes marrons; seu teto era tão alto que o aspecto escuro de suas dimensões me pareceram algo como uma sombra represada; que pronta para cair sobre mim durante a noite, me obrigou a permanecer acordado o máximo que conseguisse.

Acredito ter cochilado por um tempo, então é bem possível que o que ocorreu em seguida possa ter sido um sonho. Mas continua tão real... tão real – E eu acendo outro cigarro para me ajudar a recordar.

*

Afastando meu cobertor, o ar mais frio que eu jamais senti entrou pela janela naquela noite, e eu despertei com meus olhos ainda turvos se abrindo lentamente. O escuro do teto se fundindo com a tonalidade marrom dos móveis girou diante de meus olhos, e a amálgama de tais cores me fez sentir como quem acabara de sair de um sonho profundo.

Pouco a pouco, as cores ao meu redor foram assentando como tinta, e ao constatá-la seca, com metade de mim desperta e a outra metade intoxicada pelo cansaço, olho para a janela aberta na parede do lado esquerdo, e sinto pela primeira vez na vida o pavor percorrer meu corpo como uma enguia.

Era de lá que o vento frio vinha para se chocar contra meu rosto, o que me fez apertar meus olhos para enxergar com mais nitidez, e não havia dúvidas. Lá parado, com suas roupas escuras sendo camufladas em meio ao sereno da noite, um homem com olhos castanhos me fitava fixamente, com sua pele de traços delicados convergindo com a indiferença do olhar.

Meus músculos congelaram e eu fiquei tão imóvel quanto aquele homem; pois ele só ficava ali, parado. E fitando aquele rosto que me encarava com os olhos mortos de uma estátua, tive medo de fazer qualquer movimento que pudesse provocá-lo. Implorei para meu corpo parar de tremer, e ele não obedeceu. Por pavor, eu também não piscava meus olhos; já que não queria lhe dar a chance de atravessar a janela enquanto eu não estivesse vendo, mesmo que por um milésimo de segundo.

*

Despertado por ruídos que vêm do meu corredor, me volto em um sobressalto para a porta que leva até ele. Eles estão mais altos, se assemelhando a facas sendo riscadas contra a madeira do assoalho. E observando o negrume que a recobre, dois pontinhos de luz prateada flutuam ao léu, olhando para mim.

Sim, meu amigo. Eu escuto bem as suas provocações.

Percebo que mal fumei meu cigarro enquanto pensava em tudo isso, e já estou acendendo outro ao buscar em que ponto da minha mente eu parei.

Ah, sim... eu me lembro. Lembro que acordei naquela manhã com uma forte dor martelando minha cabeça como uma bigorna, e logo quando acabara de me sentar na cama procurando meus chinelos com os pés, não conseguindo encontrá-los por conta do escuro, me lembrei do que havia visto na noite anterior.

O toque frio do medo mais uma vez subiu pelo meu corpo, e apertei minhas mãos sobre as coxas enquanto olhava para baixo, imaginando que aquele homem ainda estaria na janela logo atrás de mim, me olhando imóvel como um boneco de pano.

Permaneci estático por longos minutos, e nesse meio tempo, percebi que não me lembrava exatamente de seu rosto; na verdade, não me lembrava sequer da cor dos seus olhos. Busquei a mesma visão da noite anterior com todo o esforço que pude, e tudo o que consegui reaver foi a imagem de um homem com a tez pálida, vestindo roupas pretas como carvão.

Mas as feições do rosto, para mim, eram um mistério. Quanto mais eu tentava reconstruí-lo, mais versões diferentes se formavam; muitas comuns, outras deformadas... e algumas inconcebivelmente terríveis para a mente de uma criança.

Afrouxando minhas mãos e respirando ofegante, levantei meus olhos para a parede do quarto escuro e percebi que, se a janela estivesse aberta, a luz do sol entraria por ela, e o quarto não estaria escuro daquela forma. Mas espere! Janela?

Devagar, eu me virei para trás sobre a cama, e informações por algum motivo esquecidas voltaram a ser assimiladas por mim.

Sim, não há janela alguma!

Eu olho para a parede onde estava o homem na noite anterior, e tudo o que vejo é o meu próprio reflexo, sendo exibido pelo espelho grande que a cobre.

"Filho, você ainda está aí?" – Perguntou minha mãe que entrara no quarto e eu não percebi – "O que você tem? Está pálido!"

Eu olhava para o reflexo dela, e como se não estivesse realmente do meu lado, perguntei:

"Esse espelho... não havia uma janela no lugar dele?" – Minha mãe alçou o olhar para ele com desinteresse, e me disse ríspida para parar com brincadeiras, pois o café estava pronto. Lembro-me dela dizer algo mais antes de sair do quarto, mas não me recordo das palavras exatas.

Continuei olhando para mim mesmo enquanto repassava tudo na minha cabeça, e pela primeira vez me perguntei se não foi tudo um sonho. Rejeitando essa ideia, me levantei num ímpeto, ainda olhando para o espelho enquanto dava a volta na cama; andei lento e atento em direção a mim mesmo, me atendo aos menores detalhes.

Não havia nada de errado. A imitação era perfeita! Mas os olhos...

Não que eles tivessem algo como uma cor diferente, pois eram exatamente iguais; poderia dizer até que eram perfeitamente idênticos. Mas depois de tantos anos, ainda sem ter encontrado palavras que definam o que senti, eu continuo utilizando as mesmas de sempre: havia um quê de estranheza naqueles olhos... e eu poderia afirmar, que me senti sendo observado por um outro alguém.

*

No escuro da porta que leva ao corredor, os pontinhos de luz prateada se movimentam. São os olhos de um rato que me observa tímido da soleira da porta, enquanto continua a riscar a madeira com suas patinhas.

E assim como me levantei da cama há muitos anos, agora me ergo da poltrona. Assim como dei a volta na cama, agora atravesso a nuvem de fumaça criada pelo cigarro. Eu ignorei a presença de minha mãe, como agora ignoro o rato, que já está acostumado com minha presença.

Me vejo no corredor, e ao final dele, assim como quando era pequeno, o meu reflexo continua de pé entre sombras espessas, olhando para mim. Eu imito os passos da criança daquele tempo, e ando até ele devagar, analisando os mínimos detalhes de sua imitação.

Da mesma forma como naquele dia, já consigo discernir os detalhes do meu rosto; e de passo em passo, conforme vou me aproximando de mim mesmo, a estranheza de anos atrás vai se tornando presente naqueles olhos, agora mais irreconhecíveis que os do rato.

Novamente, minhas feições liquidificam como tinta diante de mim, e sendo remodeladas por mãos invisíveis, meu rosto se deforma tanto em cores como em aspecto, até adotar uma sombra tão escura quanto o rato, e meus cabelos ficarem tão disformes quanto a fumaça do cigarro. Mais uma vez, parado diante do estranho, vejo a pele dele ser esticada em feições delicadas, convergindo com a imobilidade dos olhos castanhos.

E assim como naquele dia, nós sorrimos um para o outro.

Fim

Mentes em SobrecargaOnde histórias criam vida. Descubra agora