A compaixão

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Finalmente livre, lá estava ele.

Morto, de fato. Mais morto do que qualquer um poderia conceber. Suas sobrancelhas, levemente levantadas diante da tranquilidade que sentira segundos antes de fechar os olhos, contrastavam com os traços grosseiros em suas feições, adquiridos durante a labuta dos últimos anos.

Seu coração já parou de bater, sim. E suas células disfuncionais, que cresceram e cresceram até desembocarem no câncer, já dissolvem como cinzas na água. Agora descansando o corpo e a alma sobre a maca do hospital, sua filha, uma menina de cabelos curtos e que mais parece um garoto, deita a testa contra seu peito nu, deixando as lágrimas escorrerem quentes em sua pele, já insensível às sensações.

O quanto seu corpo teria de definhar para que a eutanásia, recusada tantas vezes, fosse concedida? Resistir até o último segundo, sofrendo a pior das chagas, para enfim ser derrotado pelo câncer?

A família fez de tudo para que a "rendição", como chamavam, fosse eliminada de sua mente. Mas uma doença como o câncer, implacável na forma como abrange todo o corpo, deixaria a mente ilesa? Como retirar a morte de sua mente, se ela já não lhe pertencia?

E os dentes de Ana Júlia rangem. Ela alça o olhar para a expressão de seu pai, e a raiva trespassa seu coração como uma flecha enferrujada, cujo tétano infeccioso já se difundira. Suas unhas, que ela nunca pinta, afundam no colchão da maca, sabendo que tamanho veneno só conseguira chegar até aquele ponto com a anuência de sua família.

Sua mãe, seu pai, seus avós, seu irmão, todos eles. Com suas palavras apaixonadas sobre fé. Suas frases feitas a respeito da esperança e, é claro, exemplos de pessoas mundo à fora que conseguiram "vencer o inimigo".

Seu pai poderia ter aproveitado seus últimos dias com todos. Ao redor de uma mesa, preservando a boa aparência, e se esforçando para sair desse mundo de cabeça erguida. Mas, em lugar disso, passou os últimos anos trancafiado num hospital, como um cão à espera do abate. Fraco e sem vida.

O último beijo na testa de seu pai é cheio de amor, e a seringa que atira na lixeira, repleta de compaixão.

Fim

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