Vai e vem

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O rangido da rede vai morrendo conforme ela para de balançar, e mais uma vez tiro os olhos da tela do celular.

Perdi novamente o mesmo diálogo, simples assim. Não consegui equilibrar minha atenção entre as postagens da rede social e o diálogo das personagens da série que passa na televisão. Eu procuro o controle pela rede, apalpo abaixo das minhas costas e viro minha cabeça para todos os lados; e o controle estava no chão, bem onde eu o deixara na última vez em que voltei a série em dois minutos. Dessa vez eu volto três, pois perdi bastante tempo procurando pelo controle. Percebo que ainda não sei do que as pessoas na série estão falando, e volto mais alguns minutos.

Dedico um bom tempo apenas a televisão; escuto os diálogos com atenção, desenterro informações de episódios passados e tento prever o que vai acontecer a seguir. Veja só, o celular vibra, e eu atualizo a tela. Parece que o presidente soltou uma gafe; a mulher do reality show mostrou a parte íntima sem querer; e talvez uma nova doença esteja circulando no oriente, dessa vez na Índia. Que nome será que eles vão dar dessa vez? Pereba do búfalo doido?

Rio comigo mesmo ao imaginar essas possibilidades. Vírus do pato careca, caxumba do macaco vermelho, câncer da barata albina. Realmente gargalho ao imaginar versões tão originais, e não desconsidero nenhuma delas; afinal, quem quer que tenha pensado em "doença da vaca louca" e "varíola do macaco", com toda certeza não veria loucura em meus pensamentos. Febre da capivara manca? Eu choro com essa última, e não me importo se meus vizinhos vão me ouvir gargalhar.

Já desisti de tentar não ser esquisito. Na verdade, confesso que passei a gostar que me vissem dessa forma. O jeito de descer as escadas rápido, fazendo barulhos com a boca como se fosse uma criança. Ver o sorriso no canto da boca das pessoas, imaginando que elas pensam algo como "garoto doido".

E o que vem depois?

Eu, confrontado por meu reflexo no espelho, julgando que o diminuo; me acusando de humilhá-lo e de expô-lo ao ridículo; me taxando de porco por me sujar na lama para agradar a outros porcos; gente que nunca me deu nada além de sorrisos fáceis, e que nunca me dará nada além de seus cumprimentos diários e vazios. Afinal, se eu morrer amanhã ou depois, quanto tempo levará até essas pessoas voltarem a sorrir, levando-se em conta que a notícia de minha morte lhes tirara o sorriso? Quanto tempo levará até que voltem a transar, considerando que não tenham transado no mesmo dia em que eu fora enterrado?

Eu imagino os gemidos na cama; mentalizo os suspiros de prazer e a satisfação do ápice, seja a que o homem sente ao expelir ou a que a mulher sente ao receber. Eu paro de rir, pois raiva é o que sinto ao lembrar do desprezo que sentem por mim. Crio cenários e mais cenários onde essas pessoas falam de mim sem a menor tristeza. Elas compram pão, assistem os reality shows da televisão aberta e riem com os memes da internet. Talvez um desconforto ao verem o novo vizinho, que acabara de alugar o quarto do defunto recém-enterrado; um olhar esbugalhado ao se darem conta de que minha morte completa uma semana naquele dia. Pode ser que façam o sinal da cruz.

Raiva, raiva e raiva. Mas é uma hipocrisia. Quanto tempo eu levaria para transar, caso surgisse a oportunidade? Minha vizinha de baixo morre na segunda, e, na terça, uma jovem bate na minha porta dizendo estar necessitada. O que eu faço? Volto a rir, e imaginando a defunta me assistir enquanto transo, rio mais ainda.

Travesso, ponho o controle contra a boca, e me sinto feliz com minha imaginação. Criar cenários engraçados e realmente rir com eles, apesar de isso sempre ter criado boatos a meu respeito, nos quais sou o esquisito que fica rindo sozinho. Desculpe se tenho uma mente viva. Uma das frases que eu fantasiava dizer para meus colegas de escola, orgulhoso, mas que dias depois me faria sentir uma vergonha sem par. Desculpe se tenho uma mente viva?! Realmente preciso pensar mil e uma vezes antes de dizer qualquer coisa, pois já se tornou rotineiro me sentir mal ao lembrar de tais criações.

Percebo que mais uma vez perdi o diálogo da minha série, e desisto de vez. Desligo a televisão e empurro a parede com o pé. A rede volta a balançar com força, e fechando suas abas sobre mim, como um cobertor, tento não pensar em nada por alguns minutos.

O vento corre frio por toda a extensão da rede. Eu fecho os olhos e me encontro no espaço, simplesmente viajando sem rumo. Minha nave é apenas um pouco maior que meu corpo, e por isso estou tão apertado dentro dela, sentindo o frio eterno através do metal que me protege. Aconchegante.

Minha nave vai para a direita, desviando de um pequeno asteroide; e depois para a esquerda, desviando de outro. Longos minutos se passam nesse ritmo, com mais e mais asteroides passageiros cortando a escuridão, vindo céleres em minha direção; mas eu mantenho a calma, inspiro profundamente e expiro sem pressa, para tranquilamente desviar de todos eles.

Pouco a pouco, percebo que vão desaparecendo. O caminho à frente já parece mais seguro, e não me preocupo quando a nave desacelera. A imensidão negra ao meu redor me proporciona uma tranquilidade há muito não sentida, como quando eu era criança; e não por conta das brincadeiras terem me mantido no momento presente, mas sim por eu próprio, como um cachorro, ter vivido cada dia da minha infância sem as memórias do passado e os anseios do futuro. Eu apenas vivia. E como coisa viva, mais viva do que era há poucos minutos, abro os olhos novamente. Um ar gentil e ameno entra em meus pulmões, e como um amigo sob meu teto, o recebo de bom grado.

Afofo o travesseiro sob minha cabeça e deito mais uma vez. Percebo que é verdade o que dizem sobre sofrermos mais na imaginação do que na mente. Semeio boas sementes ao lembrar das vezes em que fui tratado bem por essas pessoas que penso me desprezar; como quando percebi que o tempo havia se fechado e corri até o varal, onde encontrei um toldo gentilmente posto sobre minhas roupas. Com certeza foi a vizinha de baixo, e acho que nunca a agradeci por isso.

De qualquer forma, desconsiderando como me sinto bem, sei que amanhã vou me sentir mal ao olhar para o meu eu de agora, pois não fiz nada em meu dia de folga além de passar o dia deitado, vendo postagens repetitivas e repetindo os diálogos da série.

Sim, eu poderia sair. Descer o morro e ir até a praia de São Conrado, onde vou encontrar alguém em busca do mesmo que eu. Muito fantasioso, eu sei; mas levo em conta que, para encontrar alguém como eu, em primeiro lugar preciso sair para fazer coisas que alguém como eu faria. Por isso não posso ir para festas, e por isso não posso ir para a praia de manhã ou de tarde; mas sim de noite, onde essa pessoa também estará à minha procura.

Suspiro. Sei exatamente o que vai acontecer depois de eu sair.

Antevendo o arrependimento, andarei pelas ruas com minhas mãos enfiadas nos bolsos, pensando em voltar para casa de uma vez; até a maresia entrar pelo meu nariz, e eu olhar para a escuridão do horizonte, tentando divisar em que ponto o mar termina e o céu começa. Vou me sentar num dos simples bancos de pedra que estão na areia. Tirarei meus chinelos e brincarei com ela por alguns minutos. Enfiarei meus dedos na areia em busca do que parecia ser uma concha, mas que era só uma pedra.

Coisinha meiga! Coisinha solitária, carente e excessivamente sonhadora! Ainda não entendeu que não há nada de especial em ver e ouvir as ondas se quebrando? Previsivelmente, repetitivamente se quebrando! Entenda de uma vez que "pessoas como você" não saem de noite à procura de alguém. "Pessoas como você" ficam diante da televisão, vendo séries ou jogando. "Pessoas como você" afastam a solidão para longe como visita indesejada, e sem pensar nela, riem sozinhas.

Indeciso diante da encruzilhada, meu dedo se mantém parado sobre o botão vermelho do controle.

Mas... quem sabe, dessa vez...

Mentes em SobrecargaOnde histórias criam vida. Descubra agora