Vida em branco

14 4 0
                                    


Começo dizendo, Thomas, que desde muito pequeno, essa sensação sempre esteve comigo. De forma que, já envelhecido, e não sendo capaz de delimitar quando a percebi dentro de mim, me pergunto se eu já não havia nascido com essa chaga estranha no meu peito.

Eu me lembro daqueles anos.

Me recordo perfeitamente de olhar para mim mesmo, trancado em meu quarto, sempre ocupado com tantas coisas que imaginava inadiáveis. Lembro de imaginar que, depois que os anos se passassem, e as forças de mim saíssem, eu talvez me voltasse para trás, e sentisse o amargo gosto do arrependimento em minha garganta. Quanto desprezo não sinto por mim!

Eu escrevo essas palavras, meu amigo, e digo que minha língua se contrai, pois nela está o gosto que por tanto tempo julguei previsível. Ah, essa palavra me fez parar de escrever, meu velho Thomas. Era previsível, não era? Eu era jovem. Eu poderia ter percorrido centenas de quilômetros se assim quisesse, e não teria me cansado. Eu teria viajado. Nas minhas viagens, eu conheceria pessoas dos mais variados tipos.

E hoje, meu amigo? Eu olho para as pessoas que vivem, que sorriem, que cantam, e o gosto amargo surge lá do fundo, ameaçando sair na forma de inúmeros ratos eriçados, pois sabem eles que esse barco já está condenado.

Eu escavo fundo a vazia imensidão que foi a minha vida. Milhares, não, milhões de coisas importantes me fogem à memória, mas não a previsão que fazia sobre meu futuro. As palavras que eu usava, e o gosto que eu imaginava na boca por não viver a vida, não! De tudo isso eu me lembro. Da mesma forma que me lembro do rosto do carteiro, que me entregou as suas correspondências hoje cedo.

Da mesma forma que me lembro dos jovens, todos os dias passando pela minha rua, e me ignorando, como se eu fosse apenas mais um objeto, um enfeite enfadonho parado na calçada. Imóvel como um poste. Corriqueiro como um vira-latas.

"Eu preciso sair mais de casa" — refletia na juventude — "Preciso me forçar a falar com as pessoas. Há gente interessante na minha faculdade. Muitos rapazes cativantes, muitas garotas belas... pessoas com as quais eu poderia me divertir em uma festa, talvez."

Inúmeras fantasias como essa inundavam minha mente. Principalmente nos fins de semana, quando eu olhava pela janela, sempre convidativa, e admirava o maravilhoso brilho âmbar do pôr do sol. Eu tirava uma foto. Tirava outra. Eu a guardava comigo no computador e, às vezes, a publicava em alguma rede social. E então, como água escapando pela tampa de um bueiro entupido, a sensação de angústia, a sensação de estar — atente — estar deliberadamente jogando minha vida fora vinha até a superfície. Eu olhava para baixo, onde meus pés nus pisavam o chão aquecido de meu quarto, e conseguia sentir a água suja os cobrindo de pouco em pouco.

— Lúcio, as meninas me chamaram para um luau na praia me lembro de um convite que começava assim — Disseram que eu podia te chamar. Não quer vir?

Quer saber que desculpas eu dei? Meu amigo, isso não importa. O importante é que, se eu pudesse voltar até aquele dia, e se eu pudesse correr pelos corredores daquela faculdade, agarraria a mim mesmo pelos ombros, e o obrigaria com todas as minhas forças a ir para a maldita praia;

Aí está, meu amigo. Aí está o arrependimento que eu previa na juventude.

"Se eu continuar assim, um dia vou olhar para trás e me arrepender amargamente"

Thomas, meu amigo, as lágrimas que descem pelo meu rosto são de ódio pelo que eu fiz comigo. Pois a água que eu via subir, e que lia os meus pensamentos, descobriu que eu era capaz apenas de admirar a luz do sol pela janela, em vez de senti-la de verdade. E tão logo suplantou minha cabeça, que me afoguei por completo. Porque, Thomas? Porque eu continuei a viver daquela maneira, mesmo sabendo o fim que teria? Eu me ponho a pensar, e me lembro de não ter aceitado o convite, pois convidaram meu amigo, e disseram que ele poderia me levar junto.

Mentes em SobrecargaOnde histórias criam vida. Descubra agora