O ar há muito se tornara salgado, e o gorgolejar do oceano é a sinfonia da morte iminente.
— Deus dos miseráveis! — grita um idoso, ajoelhando-se — Como pode permitir tamanha tragédia?!
— Eu tenho mulher e filhos me esperando em casa! — grita outro homem, esse acima do peso — Por favor! Deixem-me passar!
E quanto àqueles cuja voz não é capaz de se elevar tão alta, sobrou recorrer a outros meios, como as mulheres, que agora erguem seus bebês acima das cabeças, usando-os como bandeiras.
De repente, um grito de atenção ecoa sobre todas as vozes, e os olhos se voltam para o idoso de cabelos brancos, ainda com o alto-falante em mãos. Seu uniforme azul escuro está perfeitamente passado, e seus cabelos, brancos como a neve, retratam o aprumo de quem preza pela elegância. O reconheceriam mesmo que não usasse o chapéu de capitão, a cereja do bolo.
— Ordem, meus amigos! — ele pede, o punho em riste.Seu olhar sobre os semblantes daquelas pessoas é longo, e a compressão dos lábios, calorosa como se pusesse a mão em seus ombros. O capitão sabe que não pode mentir. Ele sabe que, se disser para as pessoas que todos poderão salvar a própria vida, elas se revoltarão quando verem que os boatos são verdadeiros: não há botes para todos!
O que o capitão faz, então, é lhes confiar a verdade, assim tendo fé de que a coragem de todos suplantará o medo do vale da sombra da morte.
— E eu não temerei mal algum — ele completa, o mais belo dos discursos — pois sei que tu estás comigo.
Emocionante. Se antes as lágrimas eram frias, agora elas descem quentes por aqueles rostos, e aquecem os corações.
— Meus amigos — continua o velho capitão — minhas amigas, e meus companheiros. Mulheres e crianças primeiro!
De repente, um som estridente corta o ar como um raio, e o capitão, ao sentir uma forte e dolorosa pontada, cai ao chão com ambas as mãos no peito. O que se segue após o tiro é um caos completo. Homens usando óculos escuros surgem de todos os lados, abrindo caminho com a força de seus braços e pernas.
Centenas de mulheres, idosos e até mesmo as criancinhas são pisoteados por aquela avalanche de redpills e halterofilistas, que chegando até a borda do navio, saltam sem pestanejar em direção aos botes.
Foi assim que a sinfonia da morte saltou do gorgolejar da água para frases como "Quero mais é que se foda!" e "Salve-se quem puder!".
***
Sentindo a bile estomacal subir à garganta, minhas risadas agora são mais tóxicas do que nunca. Meus olhos lacrimejam e roncos dignos de um suíno escapam de minhas narinas, não sendo esse um motivo suficientemente vergonhoso para rir mais baixo.
Que cenário engraçadíssimo esse que eu imaginei! Acho que o chamarei de Titanic no século vinte e um. Sim, eu pensei nesse cenário quando vi o documentário sobre o Costa Concórdia, o até então maior cruzeiro do mundo, naufragado em 2012.
Por negligência do capitão, o navio passou muito próximo de uma ilha cujas rochas submersas rasgaram o casco do navio; assim como aconteceu com o Titanic, porém vítima de um iceberg. No entanto, a maravilhosa diferença entre os dois naufrágios é que, enquanto o capitão do Titanic afundou com o navio, o capitão do Costa Concórdia foi um dos primeiros a fugir!
E eu volto a rir.
Afinal, qual é a mensagem nisso tudo? O maior navio do mundo naufraga em 1912, e, exatos cem anos depois, o maior navio do mundo naufraga em 2012; mas vejam só a paródia que o último foi em relação ao primeiro! Vejam só como temos essa fixação por terminar tudo com chave de ouro, seja na forma de uma grande despedida, ou com o fim do nosso mundo se dando através de um retumbante apocalipse! E para que todo esse anseio por fins dignos? Para que sonhamos com finais gloriosos que porão tudo nos eixos? Qual é o sentido se, no fim das contas, Aquele acima de nós resolve fazer troça e mostrar que é tudo uma grande piada?
Deitado em minha cama, imagino Deus abaixando o jornal, e dirigindo a mim uma expressão ofendida. "Mas que diabos eu tenho a ver com isso?". Que diabos? Eu realmente só estou matando o tempo.
Veja só, os japoneses dizem que todos temos três rostos: o primeiro e mais genérico, que é o que mostramos para as pessoas em geral, como estranhos na rua, colegas de trabalho e vizinhos, gente a quem dispensamos cumprimentos e só. Existe também o segundo rosto, que sendo um pouco mais verdadeiro, mostramos para as pessoas que nos conhecem melhor, como nossa mãe, nosso pai, filhos, irmãos e amigos mais próximos.
Afinal, como dizer que ambos os rostos são quem somos de verdade, se estamos constantemente filtrando tudo o que dizemos e o que fazemos? Pois não posso dizer tal coisa, já que minha mãe pensará tal coisa; e eu também não posso fazer isso aqui, pois meu filho também fará isso aqui. Claro que não posso também sugerir aquilo, pois não sei minha irmã vai entender o que digo.
Concordo com os japoneses: o terceiro rosto é quem somos de verdade. Quer saber quem você é? Basta olhar bem para si mesmo quando está sozinho. Já que, sozinho, não há pessoas para influenciar ou inibir suas ações. Não há preocupações com o que dirão ou pensarão. Não há ninguém para vê-lo.
O que somos é uma sombra negra e espessa, que quando sai porta à fora, tem sua integridade cortada por milhões de facas feitas de luz; tais facas são as palavras e olhares das pessoas, que estão ali para desembaralhá-lo e embaralhá-lo novamente, sempre da forma que as deixa mais confortáveis.
Estando só, nossas partes se integram, e podemos finalmente nos compreender.
Eu me levanto da cama e vou até o espelho do guarda-roupas. Não sinto nada. Há um rosto, esse com olhos, nariz e boca. A pele está meio brilhante, e sinto o óleo na ponta dos dedos. Vou até o banheiro, lavo o rosto rapidinho, seco, e volto para a frente do espelho. Eu fico me olhando nos olhos, como que esperando que algo aconteça. Esse não é o rosto que as pessoas veem quando estou lá fora. Falta o sorriso amarelo, os olhares evasivos, o franzir de sobrancelhas, o meu hábito de morder o próprio lábio quando me sinto nervoso, dentre outras manias que meu rosto expõe ao estar entre gente.
Se o meu eu sozinho é meu eu verdadeiro, então eu sou algum tipo de louco? Alguém que, quando está só, fica inventando cenários, sejam eles sempre engraçados ou terríveis, nunca havendo meio termo? Como foi que me reaproximei de minha família, afinal? Não foi os imaginando morrendo num assalto, e eu passando o resto da vida arrependido por não ter sido mais próximo? Por que mando mensagens para meus irmãos e digo coisas carinhosas, se não por imaginá-los morrendo às facadas e tendo o vídeo de seus corpos publicado na internet? Poderão dizer que é um traço da ansiedade, mas também poderão dizer que é apenas um fruto da solidão. "O que lhe falta é companhia", imagino alguém dizer.
Decepcionado com a falta de reação, abandono o espelho e volto para a cama. Íntegros, meus músculos se estiram e relaxam. Desbloqueio o celular, e atualizando a tela da rede social, vejo as postagens que foram feitas nos últimos minutos. Parece que o naufrágio do Costa Concórdia não foi um desastre completo. Morreram algumas dezenas, sim. Mas o capitão foi preso, o navio foi levado para desmonte e agora temos um paralelo de cem anos para podermos dar risada. Será que fica melhor?
Com um buraco no peito, e sentindo a vida se esvair às gotas de sangue, o capitão dá uma última olhada para sua tripulação, e sibila palavras que ninguém jamais seria capaz de ouvir:
— Filhos de uma puta! — hilário.
Não! Melhor ainda! Em meio ao caos, com todas aquelas pessoas tentando salvar a própria vida, a ausência de uma liderança só piora tudo.
— Por Deus! — diz um oficial para o outro — Aonde diabos está o capitão?!
— Eu não acredito! — grita uma mulher, com o filho pequeno nos braços — Juro por Deus que não acredito nessa merda! Cabem oitenta pessoas nos botes! Por que tem apenas um desgraçado naquele que vai embora?!
Tomando um trago da sua cachaça, o velhinho de cabelos brancos estica as pernas numa posição mais confortável, e sua coluna fica um pouquinho mais íntegra.
— Quero mais é que se foda!
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Mentes em Sobrecarga
Short StoryContos sobre mentes sobrecarregadas; São oneshots, então pode lê-los na ordem que quiser; Alguns baseados em mim, outros em parte; Agradeço pelos feedbacks, se houverem.