"Sou um esquizofrênico".
Frase curta, mas que diz muito. Ao menos foi o que o lobo da estepe deve ter pensado quando precisou se explicar para seu anfitrião, pois havia se comportado mal. E com que esquizofrenia eu não absorvi esse hábito? Vendo simbolismo em tudo e tomando sinais vindos sabe-se lá de onde como justificativas para minhas más escolhas.
Me sentia mal por ter vindo ao mercado comprar esse "vinho" barato, mas bastou perceber que havia comprado a última unidade restante que me sentir melhor. Claro que era inevitável, então! Com toda certeza já estava pré-determinado que eu viria para esse mercadinho e compraria esse... viro o rótulo da embalagem para saber o que estou comprando. "Coquetel composto com sabor artificial de vinho". Uma garapa!
Rio por dentro ao recordar palavra tão engraçada. A conheci quando trabalhava numa lanchonete. "Ele vai tomar garapa!", disse um de meus colegas quando perguntado sobre como pagaria a pensão do filho recém-nascido. E que ambiente saudável era aquele! Os flertes entre pessoas casadas, os esbarrões ocasionais que a pelve dos homens dava no traseiro das garotas, as risadinhas que se seguiam... Eu me espantava com uma afetação ridícula pois, no fundo, também queria fazer parte daquela farra.
Sim, é realmente ridículo. Mas quão ridículos não pareceríamos se expuséssemos tudo aquilo que pensamos? Aquelas imagens que chegam do nada e que nos faz perguntar "Mas de onde isso veio?".
Como na vez em que, ajudando meu pai na pintura de um prédio em Ipanema, conheci um idoso chamado José Maria. Seu corpo era tão magro e frágil que vez por outra me imaginava lhe dando uma voadora, mas sem ter certeza de que apenas um seria o suficiente para matá-lo. Não, dificilmente um segundo chute seria necessário. Na verdade, acho que seus ossos quebrariam no ato.
Um pigarrear me faz perceber que sou o próximo da fila. Nada a dizer sobre isso. Apenas pago e vou embora, arrependido pelo meu "boa noite" não correspondido.
Será que aquele senhor ainda está vivo? Faz uns três anos desde que o vi pela última vez. Ele apenas ficava sentado no playground do prédio, vendo eu e meu pai subir e descer os andaimes com a tinta, sempre sorrindo ou olhando para o nada. Era triste. Sua filha de quarenta anos havia falecido alguns anos após a esposa, e ali, com noventa e dois de vida, sorria enquanto pintávamos as paredes.
— Ah, Deus é bom! — respondia quando dizíamos algo — Deus é muito bom.
Mas ele não era senil a todo o tempo. Na verdade, havia momentos de lucidez em que era possível manter uma conversa com ele, contanto que falássemos bem alto.
Devido a minha esquizofrenia, busquei me aproximar daquele senhor da mesma forma que, anteriormente, busquei conversar com moradores de rua. Talvez pensasse que aquela língua de noventa e dois anos pudesse guardar algo de valioso, pensamento esse que me fez rir na época.
Quero dizer, ele viveu praticamente cem anos, certo? Alguém olha para ele e não dá a mínima, mas eu, que insisto em tirar valor da vida, como produto de fora para dentro e não de dentro para fora, precisava absorver o máximo possível daquela experiência; ao menos antes de a pintura acabar.
Nessas difíceis e cansativas conversas, consegui arrancar de José Maria uma curta e interessante história. Basicamente, ele é português. Veio para o Rio de Janeiro em um navio quando tinha vinte e cinco, onde chorou diante de uma "morena que passava roupas". Fazendo as contas, concluo que isso se deu em 1955.
Tá aí algo de valor. Algo que, se não fosse por minha intromissão, simplesmente morreria com ele.
No ano de 1955, dentro de um navio a caminho do Rio de Janeiro, um jovem português se incomodou com as roupas amarrotadas, e então foi ter com uma "morena" que aceitou passá-la a ferro. Levou tempo e paciência até eu descobrir a razão de seu choro, mas pelo que eu entendi, ela havia lhe falado sobre jovens que saem de casa e que deixam a família para trás. O pai envelhece, a mãe vira uma senhorinha, e o filho está por aí, vivendo.
Tendo essa espécie particular de esquizofrenia, enlameei história tão bonita com teorias sobre o que pode ter ocorrido naquele quarto de navio.
José Maria, então um jovem de vinte e cinco, se encanta pela "morena" que passa roupas e tenta se aproximar. Pede a ela o ferro emprestado, de caso pensado mostrando como a roupa do corpo está amarrotada. Lembro de rir ao pensar na esperteza do jovem José Maria. Claro que ele sabia que a mulher lhe diria para tirar a camisa, pois ela, sendo uma morena gentil, a passaria para ele ali mesmo.
José Maria dá olhadas rápidas para o próprio peitoral, orgulhoso de seus pelos e volume. Ele tenta parecer natural com seus braços à mostra, apesar das ideias que tem sobre como fazer aquela mulher tirar as roupas também. Mas o que ela tem para lhe oferecer além de uma história triste? Uma história não de fantasia, mas que fala sobre a vida dele próprio? Pois ele atravessava o oceano sozinho, e pelos próximos anos falaria com os pais por meio de cartas. E então chora.
Foi com esse banho de água fria em mente que me pus a rir ao lado do idoso, que logo passou a rir comigo. Mas meu divertimento durou pouco.
Olhei para aquele homem ao meu lado. As rugas de sua pele mostravam os anos que tinha vivido, e suas manchas expunham as marcas que tantos anos deixaram. Mas nenhum fio de cabelo branco me incomodaria tanto quanto isso: acontecimentos que pensamos ser sinais não são esquecidos! Na verdade, quanto mais improváveis parecerem, maiores são as chances de nos lembrarmos deles pelo resto da vida. E mesmo que venhamos a nos tornar o mais senil dos idosos, como José Maria, que responde às perguntas sobre calefação com "Deus é bom", ainda assim nos lembraremos de tais sinais.
— Aí fiquei chorando — despertei de minhas ruminações ao ouvi-lo repetir, um sorriso infantil no rosto enrugado — Fiquei chorando que nem um nenê de colo.
Como me senti mal. Talvez a mulher que lhe passara a camisa pudesse muito bem ser uma idosa, e eu, que não queria nada além de ouvir uma história, me deixei levar pela palavra "morena". O jovem José Maria estava deixando sua família para trás, e foi num dos quartos úmidos do navio que a providência lhe sussurrara nos ouvidos, encontrando em sua mente lugar e oportunidade. A semente fora posta em 1955, e sessenta e sete anos não foram o suficiente para dar um sabor claro ao seu fruto. Eu não sabia se era amargo, pois ele sorria; e não sabia se era doce, pois ele estava sozinho.
Agora, José Maria deve estar encolhido a alguns palmos abaixo da terra, enterrado por homens pagos para enterrá-lo. Ou talvez esteja sentado num dos bancos do playground, vendo outro alguém pintar a faixada já desbotada do prédio. De uma forma ou de outra, me sinto mal por saber que não o ouvia por realmente me importar, da mesma forma que não nos importamos com o copo descartável quando está vazio.
Parado em meio a calçada, percebo os olhares de um mendigo idoso para meu "vinho", então me pergunto se isso seria um sinal. Será que eu ter comprado o último "vinho" e coincidentemente ter parado diante dele significa que eu deva lhe fazer essa doação? Será que esse vinho estava reservado para ele?!
Talvez, daqui há sessenta e sete anos, eu recorde esse momento e o compartilhe com algum jovem que também rirá da minha cara. "Então o velho tirou minha roupa e a morena bonita queria meu vinho."
E é com essa nova esquizofrenia que me vou rindo para casa.
Fim
VOCÊ ESTÁ LENDO
Mentes em Sobrecarga
ContoContos sobre mentes sobrecarregadas; São oneshots, então pode lê-los na ordem que quiser; Alguns baseados em mim, outros em parte; Agradeço pelos feedbacks, se houverem.