Últimas imaginações de um decapitado

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Vozes dissonantes gritam enlouquecidas, e o som que escuto acima de mim é estridente como facas sendo afiadas.

E por algum motivo, ao escutá-lo, logo me vem à cabeça os primeiros anos de minha infância, nos quais livre de qualquer dever ou compromisso, eu podia ir até a casa de minha prima Gabriela para brincarmos de aluno e professora. Aquele olhar travesso que transparecia em seu rosto ao riscar o giz contra a lousa, enquanto olhava em meus olhos para ver o resultado, me deixava irritado. Mas agora, vendo minha sombra imóvel abaixo de mim, tudo o que sinto é a mais profunda lamentação por não ter aproveitado aquele tempo.

Aqui, de olhos fechados, posso ver Gabriela sorrindo para mim; e posso também, sim... eu posso! Eu posso ouvir o som do giz contra a lousa! Eu sei que ao abrir os olhos eu a verei na minha frente, usando um daqueles vestidinhos de renda, segurando o giz com uma mãozinha e o lápis com a outra, achando graça da minha expressão nervosa por conta do som irritante que ela faz.

Há, há! Sim, Gabriela!

Eu prometo que não terei raiva. Prometo também que, ao abrir os olhos e ver você tentando me provocar com esse barulho, eu vou apertar suas bochechas e te dar uma enxurrada de beijos!

Eu abro meus olhos sentindo um desconforto em minha nuca, e enxugando as últimas gotas de esperança com um lenço seco e imundo, vejo Gabriela diante de mim. Sua pele está amarelada como a de um cadáver, com as roupas que a cobrem não passando de trapos rasgados. E suas mãozinhas... aquelas mãozinhas pequenas como as patas de um coelho, agora não seguram nada, e tudo o que fazem é ficar arqueadas uma sobre a outra, como se estivessem ansiosas por algo.

Mas o pior de tudo está em seu rosto.

Eu alço o olhar um pouco para cima, e tendo a sensação de estar me engasgando com uma pedra entalada; tenho vontade de levar as mãos até a boca, mas eu não consigo. Talvez eu esteja divagando por não querer admitir para mim mesmo que o que eu vi foi real. O rosto da pequena Gabriela? Ele estava emagrecido. Ele estava decrépito, roto... estava terrível! Sua pequena boca sorria como a criatura de sete peles deve sorrir.

Sim... essa menina se parece com minha pequena prima, mas não é ela; pois Gabriela morreu há muitos anos.

Agora eu não escuto mais o maldito som do giz sendo riscado contra a lousa, mas eu continuo lamentando não poder voltar para aquele tempo; aquele tempo em que Gabriela tinha um sorriso doce e travesso, e não essa coisa fria que eu vejo no rosto da menina. Essa sensação de abandono... eu o sinto vir junto de um frio que toma conta de todo o meu corpo, e algo se parte em mim.

O mundo ao meu redor gira, literalmente! Pois eu consigo ver as casas, praças e prédios públicos rodando por um tempo que não se acaba; e tudo continua girando. Assim como também giram os gritos das pessoas em minha mente; e as menores lembranças, misturadas com tudo o que já senti em minha vida, se afunilam de uma vez só.

Recordo-me das inúmeras oportunidades perdidas. Como quando na adolescência, ao andar pela rua, uma jovem cigana apertava o passo e então passava na minha frente. Eu me chateio, pois eu sabia que ela queria falar comigo! Ela queria que eu olhasse para ela! Aqueles olhares e aqueles sorrisos que ela fazia eram dirigidos a mim! Não aos outros, como eu me enganava!

E o gosto em minha boca amarga ao pensar que não tomei iniciativa alguma.

Vejo miseráveis enquanto tudo gira, e lembro de pessoas que eu pude ajudar, mas não quis... e por que eu não quis? Me sinto o mais maldito dos homens ao pensar que, muitas e muitas vezes, quando um pedinte me estendia as mãos vazias, eu dizia não ter dinheiro algum – Mentira! Pois eu ainda tinha alguns trocados sem uso no bolso.

Muitas vezes eu passava em frente a mulheres e crianças que mendigavam pelas calçadas, e o que eu fazia? O que eu fazia além de abaixar o olhar por alguns segundos, dirigir algumas palavras a Deus e seguir normalmente com minha vida? Não queria Deus que eu mesmo ajudasse aquela gente, em vez de pedir que ele o fizesse por mim?

Eu convidaria todos os pedintes da minha rua para comerem em minha casa! E todos os homens, mulheres, crianças e velhos de lá comeriam com fartura! Eu me esforçaria para fazer com que se sentissem em casa; e o meu sucesso seria medido pela naturalidade de suas risadas! Sinto um leve sorriso se desenhar em meu rosto ao fantasiar com o som da festança; então, sim... nós seriamos felizes.

Mas então tudo para de girar quando algo pesado se choca contra minha cabeça, e o som grave de tambor que vem de dentro dela me atenta para as gargalhadas altas e dissonantes que machucam meus ouvidos. Bem na minha frente, pessoas sujas e terríveis se amontoam umas sobre as outras, e todas me observam como se eu tivesse acabado de fazer algo engraçado.

Eu fito a multidão de muitos olhos implorando que tentem ler os meus, pois não escuto minha voz sair ao tentar falar. Eu me esforço! Me esforço o máximo que consigo com meus olhos, e lhes pergunto: por que riem tanto de mim?

Mas não há resposta alguma. Seus rostos suados e encardidos de poeira não fazem nada além de se entorpecer com a gritaria, pois isso que é uma multidão: um trem desgovernado e em sentido único, que poria para fora qualquer um que tentasse mudar seu curso suicida.

A esperança já se foi há muito tempo, e eu continuo os olhando. Até que, de repente, finalmente um rosto conhecido! É a menina parecida com Gabriela! Vejo que ainda se encontra suja e desfigurada com o sorriso da galhofa. Eu reteso meus olhos nos dela, e durante um milésimo de segundo que pareceram durar horas, percebo nela uma expressão inteligente em minha direção.

Embriagada com o furor alegre ao seu redor, ela mexe o bracinho por um momento, e alçando o olhar para alguma coisa acima de mim, vejo que me faz um sinal com o dedo para que eu olhe também. Durante todo esse tempo eu tentei falar, tentei me mexer, tentei gritar com aquelas pessoas; eu tentei tantas coisas não correspondidas, que já sem esperança, acredito não ser capaz de ver o que ela quer me mostrar.

Mas então, ao pensar em acompanhar o olhar da menina para saber do que ela ri tanto, meus olhos se movimentam por conta própria em direção ao alto, como se puxados por uma força estranha.

Eclipsando a luz do sol como um gigante, uma armação de madeira podre me olha com desprezo de cima a baixo, como se eu fosse um inseto que ela acabara de pisar. Eu me sinto esmagado pela sombra de tamanha deformidade – tão implacavelmente esmagado, que algo como uma sensação de conforto surge tímida dentro de mim.

Deve ser inútil tentar explicar, pois acho que tal sensação só possa ser compreendida por aqueles que a experimentam.

Agora a lâmina tingida de vermelho é alavancada com dificuldade por aquelas figuras, e mais uma vez ouço o agonizante som do giz sendo riscado contra a lousa. Sob tamanha sinfonia, a suja lâmina se ergue aplaudida como um ídolo pagão, revelando o círculo carnoso e ensanguentado de um corpo sem cabeça.

O desespero me domina! E me sentindo o mais miserável que já existiu, sou envolvido pelo odor pútrido da lama onde subsistem os dejetos da humanidade.

Que seja! Com meus últimos resquícios de vida, tudo o que faço agora é implorar a Deus todo poderoso! Eu imploro também ao Diabo e até mesmo aos revolucionários que me erguem com suas mãos sujas! Imploro para que o Rei, pelo qual me dediquei como um cão, seja o próximo a subir aquele cadafalso e contemplar, como um bom monarca, o quão profunda é a podridão de seu povo.

"Tragam o próximo!" – Eles gritam.

E sentindo que fui atirado em um poço úmido, escuto as vozes da multidão ficando cada vez mais distantes conforme afundo. Toda as luzes esmaecem, e como tinta escura na água, sombras opacas se fecham ao redor dos meus olhos.

Morte, finalmente!

Fim

Mentes em SobrecargaOnde histórias criam vida. Descubra agora