Estava muito difícil respirar e até mesmo segurar a bandeja com os cacos de vidro. Passava pelo corredor tão rápido que os detalhes à minha volta eram como borrões. Virei à direita, depois esquerda e então direita novamente. Não tinha certeza de onde estava e só quando avistei uma grande janela com o sol já batendo no parapeito que eu resolvi parar. Na minha mente, eu sabia que precisava concluir uma tarefa simples, mas, estava anestesiada demais para que o meu corpo me obedecesse. Apoiei a bandeja no batente e olhei através da janela. Havia um certo movimento no pátio e eu conhecia quase nada do palácio para saber em que ala eu estava. Senti o sol tocar meu rosto, desviei minha atenção para além dos muros e me permiti... respirar. Puxei e soltei o ar algumas vezes até meu estado inerte passar. Me lembrei do que aconteceu no quarto da princesa e me pareceu ainda mais grave. Cresci assistindo essa família de longe e admirando, achando que eram perfeitos na medida do possível. Mas o rei? Tão gentil com sua amada nação quando vem agindo com hostilidade com seu próprio filho. Hostilidade era eufemismo. Levei as mãos à cabeça e abaixei abruptamente, batendo a esquerda nos cacos de vidro sobre a bandeja. Arfei de dor com o corte que se formou na minha mão e mordi os lábios para abafar a vontade de gritar. Óbvio que ninguém gostava de se cortar, mas eu particularmente odiava. Tentei manter a calma, mas não deu muito certo quando percebi que estava perdida. Não tinha noção de quanto tempo perdi ali naquela ala e muito menos o porquê aquele corredor era tão vazio. Não tinha guardas e nem servos e ninguém para me auxiliar. Senti sangue verter e tirei o lenço do meu cabelo para enrolar na minha mão. Ficar com o cabelo solto quando estou nervosa me deixa mais nervosa ainda e parecia que estava tudo certo para dar errado nesse dia. Peguei a bandeja com cuidado e tentei refazer o meu caminho de volta. Na segunda curva comecei a reconhecer o trajeto e convenientemente haviam guardas à postos. Ou talvez eles já estivessem antes e eu estava aflita demais para perceber.
- A senhorita precisa de ajuda? Está bem? - Um oficial me interceptou assim que me aproximei um pouco mais. Acho que minha cara de espanto e urgência não passaram despercebidas.
- Estou, sim. Só preciso chegar até Rosa... até a Princesa Rosalya. - O guarda estreitou os olhos e em seguida me mediu de cima a baixo.
- Você deve ser a nova dama. Não é bom andar por aí sozinha, senhorita. - O tom de seu alerta era estranho mas, no momento, era a menor das minhas preocupações. Pedi licença e avancei em direção à cozinha, sentindo os olhares me acompanhando.
Ao chegar perto da cozinha, espiei pela porta para ver se meus pais estavam. Minha mãe com certeza iria fazer alarde, pois apenas uma olhada para mim, ela já saberia que não estou bem. Como que um ímã, o olhar que eu temia me achou e fez um sinal caloroso pra eu entrar. Respirei fundo e entrei. Enquanto avançava na direção dela, a expressão de entusiasmo deu lugar a preocupação.
- Filha? Aconteceu alguma coisa? - Minha mãe perguntou quase sussurrando depois de verificar se havia espectadores.
- Mãe eu...
- Então a ex-cozinheira resolveu nos agraciar com sua presença. - Com um nítido tom de deboche, a Letícia surgiu de repente.
- Como é que é, garota? - A minha mãe cruzou os braços e estreitou os olhos para ela ao passo que meu pai sutilmente a segurou, sabendo a esposa que tem. Ao nosso redor, os olhares já nos encaravam curiosos. Antes que ficasse ainda mais constrangedor eu disse:
- Preciso ir agora, mãe. Depois nos falamos.
- Não, espera aí. Acho que a Letícia quer dizer alguma coisa.
- Querida, aqui não. - Meu pai falou de canto de boca. - Não vamos arrumar problemas para nossa filha. -Minha mãe arrumou a postura e, a contra gosto, ignorou a presença da Letícia que saiu rindo.
Do outro lado da cozinha, os pais dela a olhavam com desaprovação. Talvez em qualquer outro momento, eu poderia surtar com essa garota, afinal, 80% do meu temperamento eu herdei da minha mãe. Mas o que eu acabara de descobrir sobre o rei e o príncipe era muito mais grave do que esse breve caso de inveja mal curada. E como dama da princesa, o mínimo que eu poderia fazer era me portar semelhante a tal.
- Não liga pra isso, mãe. Concentre-se no cardápio da festa e não se preocupe comigo, só estou... tentando me adaptar às novas responsabilidades. - Essa última parte até que não era totalmente mentira, mas se eu desse uma brecha, ela com certeza iria fazer dezenas de perguntas que eu sequer sei a resposta.
- Eu sei, minha filha. Mas desde que você se tornou dama, a Letícia ficou insuportável. Até o chefe Boris está quase surtando com ela. Os pais dela não sabem mais onde se enfiar de tanta vergonha.
- Não é culpa deles, muito menos de Zelennah. - Meu pai pontuou.
- Infelizmente, não posso fazer nada quanto a isso. Sei que acabei de conhecê-la, mas achei que poderíamos ser boas amigas. - Olhei ao redor e vi que todos tinham voltado ao trabalho. - Preciso ir. A princesa está me esperando.
Sem mais interrupções, peguei o café e alguns bolos para Rosalya comer, mesmo que ela não tenha pedido, acho que não é boa ideia pular a refeição da manhã. A caminho do quarto, comecei a ter pensamentos intrusivos. De fato, onde a "ex cozinheira" foi se meter? Estou neste cargo a menos de uma semana e já percebi que talvez seja um fardo pesado demais para ser carregado. Fardo esse sequer pertence a mim. Eu detesto segredos. Claro, quando não são os meus. A ideia de guardar algo grave assim me assustava. Me sinto vulnerável e na mira. Outro sentimento que também me aflige, é a pena. De Nathaniel, da princesa e de alguma forma, do nosso país. Eu sei que nenhuma família é perfeita, mas é impossível não sentir que fui enganada a vida inteira por um monarca boa pinta. Por falar em monarca, como irei reagir se tiver que estar na presença dele? E se ele dirigir a palavra a mim? Essa enxurrada de pensamentos me deixou aflita e parei um segundo para respirar, reequilibrando a bandeja. Na última curva antes de chegar ao quarto de Rosalya, avistei uma outra pessoa que era capaz de me causar emoções. Armin, estava perto da porta da princesa possivelmente fazendo ronda pois estava acompanhado de outro guarda. Eu não tive muito tempo para pensar no que aconteceu na noite anterior e vê-lo agora me deixou um tanto apavorada. Era tarde demais para dar meia volta e eu tinha deveres para cumprir. O olhar dele se encontrou com o meu e um lindo sorriso se formou nos seus lábios. Só percebi que estava segurando a respiração quando o outro guarda me deu um sonoro "Bom dia, senhorita" o que eu era incapaz de responder na mesma intensidade. Me limitei a discreto aceno com a cabeça e logo um enorme ponto de interrogação se formou na expressão de Armin. Forcei um sorriso e avancei aos aposentos da princesa, fechando a porta atrás de mim, soltei a respiração aliviada por me livrar de um confronto e por não derrubar mais uma bandeja.
- Desculpe a demora, alteza. - falei enquanto colocava a bandeja na superfície da penteadeira. - Eu ainda estou me acostumando com os corredores.
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Coração Real
FanfictionNo reino de Voulon, o jovem príncipe Nathaniel está diante do maior desafio de sua vida. Herdeiro do trono e amado por seu povo, ele sempre soube que suas responsabilidades para com o reino viriam antes de seus desejos pessoais. No entanto, seu cora...