Eu tinha dois irmãos e duas irmãs mais velhas e uma mais nova.
Eles nunca souberam que eu, que lhes servia, compartilhava o mesmo sangue que eles. Me ressentia profundamente e não me faltava vontade de lhes dizer toda a verdade, revelar que seu amado pai não era tão íntegro quanto todos diziam, que ele tinha cometido um grande erro e eu era prova viva daquilo.
Minha existência era a prova de seu pecado.
Meu irmão mais velho se casou e continuou morando na casa, o segundo irmão foi estudar em Londres. Minhas duas irmãs mais velhas também se casaram e foram embora. A irmã caçula tinha quase a mesma idade que eu.
Crescemos simultaneamente, mas não juntas e nem nas mesmas condições. Ela era uma lady da sociedade, frequentava bailes e jantares enquanto eu lavava os pratos. A culpa de termos tantas diferenças era unicamente do meu pai.
Eu o odiava, essa era a verdade que tanto temia e escondia.
Ainda podia me lembrar do dia em que fui embora daquela casa, quando me mandaram servir minha madrasta.
– Minha filha se casará com lorde Bingley e se mudará para a propriedade da família dele.
Não entendia o motivo dela me falar aquelas coisas. Queria me mostrar a distinta realidade que me separava das filhas dela? Minha irmã caçula se casaria, teria uma casa e família enquanto eu permaneceria ali.
– Você partirá com ela.
– O que? – Aquelas foram minhas primeiras palavras direcionadas a ela.
– Não a quero aqui e não posso mandá-la embora, então partirá com Eleanor.
Lorde Bingley morava em uma propriedade distante e só Deus sabia como eles viviam. Não queria ir embora, as únicas pessoas que eu conhecia estavam ali.
Fiquei tão absorta que minhas mãos fraquejaram e deixei a bandeja cair, manchando o tapete limpo.
– Quanto desperdício. – Aquela mulher ficou de pé e me encarou, havia raiva e tanto desdém que me deixou enjoada. – Agora entendo porque ele a deixou morrer sozinha.
Até aquele dia não tinha entendido muito bem em quais circunstâncias minha mãe havia morrido, mas então eu soube. Minha madrasta me contou, com certo prazer, como meu pai a arrastou para fora da casa, temendo que a doença se espalhasse, e a deixou nos portões, com frio e sozinha.
Ele não teve compaixão, sequer me deixou se despedir dela. Me trancou no quarto – agora podia me lembrar – e a deixou morrer junto da solidão.
Havia uma parte de mim que não queria acreditar, que seria cruel demais e eu não podia ser filha de alguém que fosse capaz de tal atrocidade.
Minha madrasta levantou o rosto e encarou alguém além de mim. Era meu pai parado na porta do salão. Ele tinha ouvido tudo e não negou nada.
Então fui embora.
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Acordei novamente com latidos, mas não sabia se eram reais ou apenas fruto de minha fraca imaginação. Quando percebi que tinha amanhecido, o medo se apoderou de mim e eu voltei a orar.
Tem misericórdia de mim, Senhor. Não permita que esse homem me faça mal.
Henry não retornou. Não sabia se ficava aliviada ou ainda mais apavorada.
Meu estômago roncava, minha garganta estava seca e estava desfalecendo.
Não queria voltar a dormir, meus sonhos com o meu passado e a vida com meu pai só pioraram meu cativeiro. Por mais que não quisesse, aquelas lembranças retornaram à minha mente.
Fui embora de sua casa com a roupa do corpo e não me importei em não ter conhecidos ou família. Não podia ficar mais nenhum segundo naquele lugar ou acabaria fazendo uma besteira.
Ajudava feirantes em troca de algo para comer e passei dias vagando pela cidade como uma mendiga, até que consegui um emprego para limpar os vagões de trem. Alguns dias depois a governanta do meu pai foi me procurar na estação, me disse que poderia me ajudar. Trabalhei como criada para uma família na cidade e me mudei para Seasons City com eles, mas não sem antes visitar meu pai.
Por muito tempo alimentei ódio por ele. Tanta raiva que sentia o coração acelerar ao pensar nele.
Perdoá-lo foi a coisa mais difícil que já fiz.
Me lembro de ir até sua casa, encarar os olhares curiosos e amigáveis daqueles que haviam me ajudado a crescer.
Quando ele saiu do escritório, o encarei por um longo minuto, quase havia me esquecido o que tinha ido fazer.
– Você a deixou morrer sozinha e no frio. – Murmurei. – Eu queria ter estado ao lado dela, ficado com ela. – Tentei segurar as lágrimas. – Gostaria de odiá-lo para sempre, senhor Miller, mas minha mãe não aprovaria, Deus muito menos. Não posso carregar o fardo de odiá-lo, iria me esmagar aos poucos até que eu definhasse. Eu o perdoo, senhor Miller. E peço perdão caso tenha lhe ofendido de alguma forma.
Ele não se importou. Apenas me deu as costas e voltou para o escritório.
A família com quem me mudei para Season City logo foi embora e eu fiquei sem emprego novamente.
Até que consegui algo em Anders Hall e agora...
Agora estava trancada novamente, sem esperança.
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Ainda Vejo Você
Ficción históricaQuando comecei a trabalhar em Anders Hall, entendi que precisaria guardar os segredos da família Anders, principalmente de Dorian, o filho bastardo do meu patrão. Só que, sem querer, me tornei guardiã de uma confissão que poderia causar a ruína da f...