Gatinho Milk

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Desde a minha conversa com David, passei o dia inteiro focado no trabalho, quieto e pensativo. Quase ninguém notou a minha presença. Quando finalmente saí, a chuva já molhava as ruas, e tudo o que encontrei para me proteger foi um guarda-chuva velho, esquecido nos fundos do café.

Meu coração ainda estava confuso. Minha mente girava em torno de possibilidades: como evitar aquele encontro ou, pior, como seria se tudo corresse bem? Mas eu não queria que desse certo. Eu não sentia nada por David. Na verdade, nunca senti nada por ninguém.

Nunca fui um homem romântico ou apaixonado. Na adolescência, nunca tive namoradas e só percebi que era gay quando notei que não tinha interesse por mulheres. Fazia tanto tempo que me assumi, mas, mesmo assim, nunca consegui despertar sentimentos por outra pessoa. Meu mundo era o trabalho. Ele preenchia grande parte dos meus dias, e, por isso, eu nunca senti a necessidade de outra companhia – pelo menos não uma companhia amorosa.

Os pingos gelados da chuva escorriam pelo meu rosto. Poetas dizem que a chuva simboliza um novo começo, uma limpeza de emoções acumuladas. Talvez agora fosse o momento de chorar? Mas eu não tinha motivos para isso, só esse desconforto constante. Era estranho, uma ansiedade que apertava o peito. Algo não estava certo.

Qualquer mudança na minha rotina, qualquer desvio de humor, parecia me causar estresse. E agora, esse sentimento confuso pairava sobre mim como o céu nublado. A água da chuva escorria até os meus sapatos, molhando meus pés enquanto eu caminhava lentamente.

Suspirei aliviado ao ver a minha casa à distância. Finalmente, eu poderia me jogar no sofá e, talvez, encarar de frente aquele gosto amargo que insistia em permanecer.

Ao entrar em casa, percebi que algo estava errado. Milk não veio me receber como sempre fazia. Imaginei que estivesse dormindo no sofá, mas, ao me aproximar, não vi sinal do felino. Meu coração deu um salto. Comecei a me preocupar e procurei por ele em todos os cômodos, chamando seu nome, mas nada. Milk havia sumido sem deixar rastros.

Olhei para a vasilha de água e ração – ambas ainda cheias. Ele provavelmente estava desaparecido desde cedo. Mas como isso era possível? Antes de sair, eu tinha certeza de que havia fechado todas as portas e janelas. Ou será que não?

Quando cheguei ao meu quarto, vi a enorme janela escancarada. Meu estômago revirou. Sem pensar duas vezes, saí correndo pelas ruas, gritando e chamando por ele. A ideia de Milk perdido por aí, sozinho, molhado, sem comida, me deixava desesperado. Meu coração parecia apertar a cada passo, esmagado pela culpa.

Entrei em becos, vielas e terrenos baldios, vasculhando tudo. A cada esquina, minha ansiedade aumentava. "Que tipo de tutor eu sou?", pensei, lembrando das vezes em que esqueci de colocar sua ração ou de trocar sua água. E agora, deixei a janela aberta e ele fugiu. Talvez Milk merecesse alguém melhor para cuidar dele, alguém que não fosse uma negação como eu.

Corri por quarteirões inteiros, abrindo latas de lixo, olhando sob roupas jogadas, atrás e embaixo de carros. Gritei o nome dele até minha voz começar a falhar. Mas não havia nenhum sinal de Milk. Ele tinha desaparecido. E a dor desse vazio era insuportável.

Voltei caminhando para casa, com os olhos banhados em lágrimas, chutando pedrinhas e poças de água acumuladas no chão. Nem o frio, nem o cansaço conseguiam dissipar a tristeza que dominava meu corpo. Já perto de casa, notei um homem parado em frente à minha porta. Levei um susto imediato, mas, à distância, ele me parecia familiar. Conforme me aproximei, reconheci a silhueta de Vee. Tocando levemente em seu ombro, confirmei: era ele, e, em seus braços, estava Milk.

Meus olhos brilharam de alegria, e não pude conter a comemoração. Peguei meu gatinho no colo, apertando-o com força em um abraço. Ele estava seco, sinal de que Vee havia cuidado dele.

The Scent of LoveOnde histórias criam vida. Descubra agora