III

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Os olhos da garota abriram-se com dificuldade, mas não foi a claridade da janela que a causou dor de cabeça, e sim os gritos vindos do andar de baixo. Camila afundou a cabeça no travesseiro e sentiu seu corpo todo clamar por descanso. Seu desejo era ficar na cama e não escutar mais nada ao seu redor, não queria ter que se preocupar com matérias acumuladas, trabalhos atrasados, provas que precisa se sair bem... Ela realmente não ligava, não queria mais isso ocupando sua mente. Não queria mais sentir o peso do mundo nas suas costas e não queria mais se sentir impotente perante a ele. Queria parar de se sentir presa e castigada constantemente em sua própria pele, não aguentava mais um segundo dessa tortura que era sua vida. Queria dormir para sempre.

Muito contragosto e após longos minutos se levantou, como todos os outros dias, e fez o que tinha que fazer. Não tinha prazer nenhum em levar os dias, muito menos da forma que levava, só queria poder ficar na cama. A qual havia deixado desarrumada como o habitual e deu seus primeiros passos naquele dia que mal havia começado e já estava se sentindo derrotada. Olhou-se no espelho e viu que a maquiagem preta de ontem a noite ainda não tinha saído, mas não se incomodou em tirar. Ao observar brevemente seu reflexo questionou-se se os acontecimentos da noite passada haviam sido reais ou não, sua mente estava confusa demais, nem sabia que dia da semana era hoje.

Colocou uma roupa qualquer e saiu para o corredor, já se preparando para a dor de cabeça aumentar. No seu caminho até a escada avistou a porta do quarto de sua irmã entreaberta, a possibilitando ver um adolescente sair pela janela, enquanto Sofi vestia uma camiseta. Camila negou com a cabeça e logo viu sua irmã bater a porta com força na cara dela. Sofi era só um ano mais nova, e já era tão revoltada com a vida quanto Camila... Isso era deprimente.

- Você é tão sem criatividade que precisa transar com o meu chefe! - A voz de seu pai ecoou pela casa, enquanto descia os degraus sem a menor vontade - O meu chefe!

Terminou seu trajeto longo e doloroso e logo virou para o corredor que dava em direção a cozinha, onde seus pais gritavam e quase quebravam os pratos. Não estava forte o suficiente para passar correndo por ali na tentativa de evitar entrar naquele ambiente barulhento, mas precisava mesmo que contra sua vontade, mal se lembrava da última vez que tivera uma refeição... precisava pelo menos tomar água, estava fraca demais.

Ele sabe que é traído mas insiste em continuar em casa, pensou Camila enquanto pegava uma caneca e enchia de água.

- Se você ao menos me deixasse explicar... - sua mãe tentou dizer, mas fora cortada.

- Não precisa explicar porra nenhuma... Eu vou embora! - pela milésima vez, o homem dizia que iria embora... mas nunca ia. - Então você vai poder transar com ele a vontade!

Como os pais continuavam a brigar com a filha presente ali? Eles nem ao menos notaram a presença dela, eles nunca notam. O "bom dia" não existia mais nessa casa, nem ao menos se cumprimentavam. Mas não era nenhuma novidade, aliás, um mero gesto de compaixão já seria desconfiado.

Camila continuou a beber sua água, encostada na pia cheia de louça suja, já que ninguém mais se importava e cuidar da casa. Seus pais andavam para lá e para cá, gritando e dizendo palavrões, como se a filha fosse invisível, ou nem estivesse ali.

- Como foi? - o pai gritou, se aproximando da mulher com cabelos claros, que tinha um cigarro no meio dos dedos. - Como foi transar com o meu chefe sabendo que um dia eu ia descobrir?!

A mãe pareceu pensar e fez uma cara desafiadora, cerrando os olhos e se aproximando do homem.

- Eu nem ao menos pensei em você enquanto fodia com ele!

Isso já era demais para Camila, aquelas palavras faziam seu estômago se revirar e a vontade de vomitar se fez presente. Pegou a caneca vazia e jogou no chão, fazendo os estilhaços voarem para todos os lados. Finalmente, depois de muito tempo os pais notaram que ela estava ali. Olharam para ela com o olhar assustado, se perguntando porque a filha fez isso. Mas eles nunca saberiam, eles não ligavam, realmente. A adolescente olhou bem para seus pais, e depois pisou em cima dos cacos com seu tênis, e andou para fora da cozinha. Pegou sua mochila que ficava pendurada no mancebo ao lado da porta, e ao abrir sentiu a claridade lhe incomodar.

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