Capítulo 1: A mesma música

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Por mais que eu fixasse os olhos no quadro negro, as palavras ainda pareciam fora de foco.

Minha professora vagava pela sala mexendo a boca, talvez estivesse explicando a matéria ou só estava contando, mais uma vez, sobre suas tentativas frustradas de tentar ter um filho.

Eu a detestava. Apesar de todos os outros alunos preferirem que ela falasse sobre sua vida - assim a gente ficava sem matéria e o tempo passava mais rápido -, eu a detestava por isso. Português era minha matéria favorita, e por que diabos eu gostaria de saber da vida dela?

Não sabia o que ela falava, mas apresentava o batom dela para uma menina do meu lado. Estava parecendo uma propaganda de televisão tentando vender o objeto. Eu a observava pelo canto do olho, enquanto minha mão tampava meu ouvido para que ela não visse que estava ouvindo música e não com a atenção focada nela.

"Com certeza ela chamaria minha atenção se visse o meu fone no ouvido. Eu estou prestando atenção na música e não na vida dela, o que é extremamente desrespeitoso contra o ego dela". Pensei enquanto pulava a faixa que estava começando.

Quando finalmente aquela aula estava perto do fim, eu lembrei que era terça-feira, e que naquele dia tínhamos aula dupla. Nunca imaginei que reviraria os olhos para uma aula de português.

Deitei minha cabeça sobre os braços cruzados em cima da mesa. Não demorou muito e senti alguém cutucando meu ombro. Me virei para trás e li os lábios do Pedro: "ela ta falando com você".

Retirei os fones rapidamente e virei para frente. A professora não estava lá. Virei novamente para trás para perguntar o que o Pedro queria dizer, quando a professora me encarou.

- Conta pra gente como foi sua noite ontem, Gustavo!

- Como assim? - Perguntei me virando para frente, acompanhando a movimentação dela.

- Está querendo dormir na sala, com certeza a noite foi boa. - A maior parte da sala parecia rir. E eu não entendia como a noite de um garoto de 17 anos poderia ter sido boa em plena segunda-feira.

- Ah... - foi a única coisa que eu disse, mas foi abafado pelos risos.

Era a segunda semana de aula e eu já queria que o ano acabasse logo. Era meu último ano e seria inútil, pois era perceptível que teria prejuízo nos futuros vestibulares, já que eu sabia que com aquela professora em português a gente não aprenderia nada de útil. Isso também se aplicava ao professor de história, que na semana passada em todas suas aulas comentou sobre um reality show que eu nunca ouvira falar, mas que a sala inteira amava.

Voltei o fone de ouvido para a orelha da direita, onde ficava mais escondido já que minha fileira era próxima a parede. Fiquei encarando a porta, onde o mato estava recentemente aparado e algumas aves brincavam ali. Alguma sombra se aproximava e de repente a diretora da escola estava falando algo, encostada na soleira da porta. Retirei o fone. Ela apresentava um novo garoto. Seu nome era Thiago. E ele vinha em minha direção.

Ele me encarava durante todo o percurso.
E parecia vir em câmera lenta.
Me puxou da cadeira, a sala inteira abriu a boca surpresa quando ele me beijou.
A professora, junto com a diretora, nos aplaudiu.
Passei a mão pelos cabelos dele e o puxei pra mim.

- Oi, depois você poderia me emprestar o conteúdo das matérias até agora? - A voz dele quebrou meu devaneio. Ele estava sentando na carteira da frente.

- Ãahn. Ah. Aham. Claro, sim. - Eu disse, desviando o olhar dele e observando minhas canetas sobre a mesa.

- Me chamo Thiago, e se você deseja que a Luciana não saiba que você está ouvindo música, deveria abaixar um pouco o volume.

- Quem é... - Luciana era a professora, meu Deus! - Ah, certo. Valeu!

Eu só queria que ele não tivesse percebido que tive um devaneio com ele sem nem saber nada de sua vida. Às vezes a Léo tinha razão sobre mim: eu era um pouco superficial, e qualquer garoto entrava pra minha lista de possíveis-ótimos-namorados. O problema era que ela e eu sabíamos muito bem que eu nunca havia beijado ninguém com quem fantasiava. Aliás, ela era a única que eu havia beijado.

Senti o olhar de Thiago sobre mim. Levantei os olhos da minha caneta até os dele.

- A propósito, nesse seu lugar senta uma aluna faltante. E eu não quero que a Eleonora sente em outro lugar. - para não parecer muito rude, dei um sorriso de canto.

- Tudo certo, amanhã sento do outro lado. É o único lugar restante, né? Eu não tinha visto quando entrei.

- É, a sala é superlotada, digamos assim.

- Por isso a diretora disse que essa não é minha sala definitiva.

Fiquei em silêncio absorvendo a informação.

- Eu amo essa música. - Ele disse.

- Então não abaixei o volume suficiente.

- Não. - Ele sorriu levantando o celular. - A mesma música.

Ele tava ouvindo o mesmo álbum que eu. Sorri. Afinal, era difícil achar alguém que curtisse a mesma banda que eu. Desviei o olhar e a professora ainda tava falando de suas compras na última viagem ao exterior. Mas agora tinha algumas coisas escritas no quadro. Cutuquei Thiago com a ponta da caneta.

- Pode começar a copiar. Apesar de ser a segunda semana de aula, é a primeira vez que ela coloca algo no quadro.

Nós dois rimos e ele disse algo como um "estava quase na cara isso".

Todos os erros que eu cometiOnde histórias criam vida. Descubra agora