Capítulo 2: Um soco no estômago

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Estava bem cedo e eu estava tão ansioso pelo momento em que veria a Léo para poder contar do dia anterior que não percebi que estava na escola bem antes do horário. Os portões nem haviam sido abertos e tive de esperar sentado no chão. O céu ainda estava escuro e o horário na tela do meu celular dizia claramente que eu tinha problemas com compromissos. Ou chegava muito cedo ou muito atrasado... ou nem chegava.

As primeiras pessoas começaram a chegar, mas nenhum era conhecido. Mandava mensagem para a Léo, mas como ontem, ela não respondeu nenhuma. Estava começando a ficar preocupado, quando todos meus pensamentos mórbidos sumiram vendo ele atravessar a rua com um sorriso que poderia iluminar toda a cidade. Sorri de volta, claro, não com toda aquela espontaneidade que ele tinha. Afinal, tive de me lembrar como era sorrir depois de desaprender com a sensação que a presença dele me criava.

- E aí? - Ele disse parado em frente a mim.

Acenei com a cabeça e tirei o fone de ouvido. Ele esticou a mão para mim, e quando a segurei me puxou para que me levantasse.

- E aí. - Falei meio sem graça, não sabia o que falar. Eu nem sabia se poderia abraça-lo, como fazia com todos meus amigos.

- Teu caderno está comigo. Deu tempo de copiar tudo, levou a tarde inteira ontem. Em duas semanas e tudo aquilo de química? Aonde esse país vai chegar? - A voz de Thiago era diferente das outras que eu conhecia naquele horário da manhã. Parecia que ele não tinha problemas para acordar, pois estava animado e falava entre sorrisos. Ao menos para mim, era difícil sorrir antes das sete da manhã. - Vamos entrar?

- Ah.. será que você poderia esperar a Léo comigo? Ela já deve estar chegando. A gente sempre chega uns quinze minutos mais cedo...

- O Léo. - Falou num tom como se estivesse me corrigindo.

- A Léo. - Dei ênfase no artigo.

- Como assim a Léo? Isso soa estranho demais, Gustavo!

- Eleonora! Minha amiga, lembra? A que senta no lugar que você usurpou ontem. Ela detesta o nome dela, e por favor, sempre a chame de Léo.

Thiago ficou em silêncio alguns segundos até absorver a informação. Ele não conhecia aquela garota como eu, e dei graças aos céus que ela não estava presente para não ter presenciado a guerra dos artigos.

Quando deu sete horas e o sinal soou, me convenci a entrar sem a presença da minha melhor amiga. Thiago foi me contando sua forma de se adaptar a mudanças, já que era novo na escola, até entrarmos na sala. Ele aproveitou que a Léo tinha faltado de novo para sentar no lugar dela. E ficamos conversando a aula inteira.

Me atentei aos detalhes de Thiago enquanto ele lia um trecho do livro de inglês para a classe inteira. Em primeiro lugar, seu inglês era ótimo. E não sei o motivo, mas naquele momento elegi a voz dele como a minha preferida. Os olhos dele percorriam pelas linhas invisíveis do livro, e eu os acompanhava. Eram grandes e extremamente profundos. Por um instante tive medo de me afogar na imensidão negra que os olhos dele aprisionavam. Sorri de canto observando o fato de que ele tinha barba, mas era falhada em alguns lugares, como o bigode por exemplo, que não tinha sequer um fio.

Quando ele terminou de ler o texto, deu uma gargalhada que foi acompanhada pelo restante da sala. Percebi que já estava perdido na leitura, e direcionei meus olhos de Thiago para o livro. E tinha uma charge ali que nem sequer li para entender a graça. Voltei a observá-lo, e naquele momento também elegi a risada dele a minha favorita de todas.

Na hora do intervalo, não saímos da sala. Alguns alunos costumavam ficar ali dentro, jogando cartas ou colocando a conversa em dia sem interrupções de professores. Thiago e eu ficamos ali parados, encostados na parede, observando os colegas de classe.

- Tenho certeza que o de boné vai gritar UNO primeiro. Você aposta em quem?

Olhei para o garoto que ele falava e também apostei nele. Ouvi um "não vale", e sorrimos. Ele puxou meu fone de ouvido caído e levou até a sua orelha. Pediu para que aumentasse um pouco o volume e ficamos o restante dos minutos assim. Às vezes nos entreolhávamos e cantávamos juntos algum trecho da música. Os outros alunos nos olhavam toda vez que cantávamos em uníssono, e aquilo virou motivo de graça para nós dois. Sempre que ficava quieto demais, gritávamos a música em plenos pulmões.

No fim da aula, ele me acompanhou até em casa, mesmo eu insistindo que não precisava o percurso inteiro. Na porta de casa ele se despediu e voltou embora. Fiquei observando ele correndo, sem olhar para trás.

Finalmente ele olhou para trás. E eu acenei. Ele parou de correr e voltou lentamente. Quando ficou frente a frente comigo, me lançou um sorriso sem mostrar os dentes.

"Você tá sozinho em casa?" A voz dele estava combinando com o sorriso e eu estremeci.

E o vi sumir de vista, quando virou a rua indo embora. Olhei para meus pés, e ri sem graça. Às vezes o mundo na minha cabeça era muito mais interessante.

Quando entrei pela sala, a primeira coisa que vi foi Eleonora sentada no meio do sofá, me encarando, imóvel. Joguei a mochila para o lado e fui em sua direção para poder abraça-la, mas me parou com a mão direita e percebi que os olhos dela estavam marejados.

- Léo? O que aconteceu? - Sentei ao seu lado, levando a mão para o ombro dela.

- Não posso voltar para casa. - A voz era de choro, por isso demorei a entender, e fiquei em silêncio repetindo as palavras na minha cabeça até fazerem sentido.

- Ah, hã? Como assim? - Minha garganta ficou seca. Entendi que era algo extremamente embaraçoso quando ela não me respondeu, mas começou a chorar.

Meu ombro serviu de encosto para a cabeça dela por uns vinte minutos. Não se ouvia nenhuma palavra. Eu não tinha ideia do que dizer, até porque não sabia o que realmente estava acontecendo. O relógio da parede apontava que logo meus pais chegariam para o almoço e não sabia como lidaria com a situação de ter minha melhor amiga chorando no sofá da sala.

- Vem, vamos para o meu quarto. Lá você pode me contar melhor essa história e não precisará passar pelo interrogatório da minha mãe.

Deitada na minha cama, Eleonora chorava mais e mais.

- Léo... não sei o que dizer. Hã... vai ficar tudo bem. - Afirmei, mesmo minha voz tendo criado um ponto de interrogação no final da frase.

- Gu... - ela começou, mas não terminou. Voltou a chorar.

Minhas mãos começaram a suar. Estava ficando aflito e a beira de chorar também, mesmo sem conhecer o motivo.

- Tem a ver com o quê? - Tentei fazê-la falar mesmo que fosse por afirmações com a cabeça - Sua mãe? - Ela negou, aos prantos - Seu pai? - Afirmou soluçando. - Meu Deus, Léo... - Me aproximei e a abracei.

O pai dela estava no hospital mês passado com uma suspeita de tumor, mas os exames negaram e tudo havia ficado, teoricamente, bem. Para ela estar chorando naquela situação, presumi que os exames estavam errados e ele estava realmente doente.

- Eu sinto muito - minha voz saiu tão baixo que achei que ela não tivesse ouvido - Sinto muito...

- Gustavo - Ela me encarou no fundo dos meus olhos. E vi a marca de um machucado no canto do lábio dela. Arregalei os olhos assustados quando percebi que ela havia levado um soco na boca. - Eu estou grávida.

Enquanto Eleonora tinha a marca de um soco nos lábios, eu poderia jurar que agora também tinha uma igual, mas em outro lugar.

Todos os erros que eu cometiOnde histórias criam vida. Descubra agora