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Essa mulher ter voltado mexeu muito com Diana. Tinha uma sensação de que não tinha acabado, mas achei melhor deixar pra lá, pra que Diana não ficasse preocupada. Dona Jô fez de tudo pra ela depois do que aconteceu, elas até conversaram sobre o assunto sozinhas e continuam se dando muito bem.

Tudo se seguia na sua normalidade, mas tinha alguém que não andava bem: Azul. Ele demonstrou um comportamento estranho nos dias que se seguiram. Não o víamos mais correr e pular, e quando o soltávamos, ele deitava na sombra da amendoeira do quintal, ou no tapete da sala. Mas não vinha pulando em todo mundo como fazia antes. Como continuou comendo como sempre fez, não notamos muita diferença.

Com nossa rotina atarefada (eu no trabalho, Diana na escola e dona Jô em casa), quase não o víamos. Eu mesmo só o cumprimentava quando chegava e saía às vezes com ele aos sábados de manhã, se eu acordasse bem. Minha mãe notou a estranha apatia de Azul e, numa sexta-feira à noite, me perguntou o que tinha acontecido.

— Você já viu como seu cachorro tá hoje?

— Não, mãe. Por que?

— Ele tem andado estranho a semana toda. Só come e dorme. Não late pra ninguém na rua, não pula em ninguém quando solto ele.

— Jura? Amanhã de manhã eu saio com ele.

Quando eu saía com Azul era sempre a mesma coisa. Ele puxava muito, me fazia cair e depois vinha lamber meu rosto como se nada tivesse acontecido. Não avançava em ninguém, só latia pros cachorros que rosnavam pra ele.

Dessa vez não foi assim. Ele foi andando do meu lado, com uma aparência cansada, e toda vez que via uma sombra, puxava pro lado dela, e deitava lá. Era uma saga pra sair de lá, porque ele não queria levantar. Não andei muito, e voltei pra casa, preocupado. Falei com dona Jô e o levei ao veterinário, de carro. Diana quis ir comigo, e eu não fui contra. Afinal, na minha ausência, era ela quem cuidava de Azul.

Chegando na clínica veterinária, fomos atendidos rapidamente. Era sábado de manhã e não havia muito movimento. O rapaz que examinou Azul parecia não ser muito mais velho que eu, mas parecia saber o que estava fazendo. Eu e Diana olhávamos apreensivos, com medo do que poderia vir. Ele terminou de examiná-lo e virou pra nós, perguntando:

— Carlos, não é? Então, Carlos, está aqui na ficha dele que ele tem 11 anos, não é isso?

— Mais ou menos isso. Calculamos a partir do dia que ele foi deixado na nossa porta, e ele era bem filhote...

— Pois bem. Ele não tem nada, a não ser uma coisa: Idade demais. Ele só está velho, e acho bom que todos vocês se preparem, porque a hora dele está perto.

Fiquei muito triste. Foi um baque saber que meu cachorro, o meu melhor amigo desde que eu tinha 10 anos, poderia partir a qualquer momento.

Voltei dirigindo e pensando no que passamos juntos. Eu não tinha amigos na escola, todos me batiam por eu ser pequeno e magro, e eu já cheguei sangrando em casa depois de uns três moleques me pegarem na esquina da escola. Troquei de colégio várias vezes por isso, mas não adiantava. O diretor de um desses colégios sugeriu que eu aprendesse em casa mesmo, que não fosse ao colégio, mas minha mãe não deu ouvidos. Quando finalmente encontramos um colégio onde não me batiam, eu não falava com ninguém, tinha medo de me aproximar e levar mais surra. Não confiava em ninguém e sentava sozinho na hora do recreio. Até que, em uma madrugada de chuva, eu escuto uns grunhidos na porta... Quando fui ver o que era, vejo um cachorrinho molhado, no meio-fio, quase na rua, enrolado em uma toalhinha azul, que estava soltando tinta e fez uma mancha enorme nele. Eu e minha mãe cuidamos dele, demos banho e comida, e esperamos alguém procurar por ele, mas ninguém veio. Fomos nos apegando e decidimos ficar com ele. Quando eu chegava em casa triste e sozinho depois do colégio, quando eu sentava no chão da sala ele vinha pro meu colo e lambia meu rosto, parecendo feliz de me ver. Depois, deitava na minha frente e ficava olhando pra mim. Comecei a contar sobre meus dias pra ele, e, com isso, fui pegando confiança pra falar com o pessoal da minha escola também. Tenho amigos até hoje que estudaram comigo, que, se não fosse por Azul, eu não teria. Quando ele ficou doente, me desdobrei no trabalho, fazendo hora extra, pra pagar o tratamento, e mesmo tendo quase morrido, ele continuou com a gente. Nos ajudou a vigiar Fred quando era bem pequeno, latindo alto quando ele começava a chorar na madrugada e ninguém atendia, e só parava de latir quando Fred parava de chorar. Ele era mais que um cachorro qualquer, era parte da família.

Ao chegarmos em casa, o prendi perto da casinha dele, esperei ele deitar e dei um beijo na testa dele, e disse baixinho:

— Você pode descansar quando quiser, Azul. Nunca te esqueceremos.

Ele lambeu meu rosto e me olhou do mesmo jeito que fazia quando eu chegava do colégio. Esperei Diana entrar e sentei do lado dele. Deitei sua cabeça na minha perna e comecei a falar sobre minha semana.

Fiz isso por mais umas duas semanas, todos os dias, até que, numa quinta-feira, eu deitei sua cabeça em minha perna e ele não me olhou mais. Estava de olhos fechados, e não lambeu meu rosto. Coloquei a mão no seu focinho e não senti sua respiração.

Quando entrei em casa, Diana e dona Jô viram no meu rosto o que tinha acontecido. Diana me abraçou chorando, depois minha mãe veio e me abraçou também. Escutei minha mãe choramingar baixinho:

— Era a hora dele, meu filho. Eles não vivem pra sempre.

Eu sabia disso. Chorava, mas sabia disso. Quando contei aos gêmeos o que tinha acontecido, Flávio subiu, porque não gostava de chorar na minha frente, e Branca correu pra casa dele. Foi doloroso ver Branca soltá-lo e tentar reanimá-lo.

— Vamos, Azul! Pega ali sua bola! Vem, pula em mim, suja minha roupa, me joga no chão!

O enterramos embaixo da amendoeira, e colocamos a casinha em cima do "túmulo", assim como Diana fez com Dolphin. Todo mundo chorou muito, era como se um membro da família houvesse partido mesmo. O que mais doía era estar aos sábados em casa de manhã e não ouví-lo latindo, não poder soltá-lo e correr com ele pelo quintal, não poder passear com ele, não poder procurar Fred desesperadamente com medo de que pudesse estar enfiando a mão na boca dele. O meu melhor amigo desde sempre tinha feito seu papel na Terra e foi lamber o rosto de Deus lá no céu dos cães.


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