5.

7.3K 800 170
                                    


O mordomo saiu da cozinha equilibrando uma bandeja com os dedos finos. Ele, magrelo e embrulhado em um terno caríssimo parecia com o peru servido aos convidados. Uma grande mesa de madeira ocupava todo o salão iluminado por um lustre de cristal. Em volta dela, pessoas pomposas bebericavam os vinhos de seus copos e trocavam sorrisos convenientes. As mulheres vestiam casacos de pele e os homens estavam sufocados por gravatas caríssimas.

O barulho de talher contra vidro interrompeu os murmúrios que reverberavam pelo salão. Um homem alto, com bigode muito bem aparado ao estilo italiano, levantou-se de sua cadeira, batendo o garfo no copo. Quando parou, sorriu para as pessoas no salão em um rápido momento de silêncio.

— Boa noite a todos. Estou muito satisfeito por ter todos vocês aqui neste evento tão especial. Oficializo hoje que eu e a minha querida Jane... — ele puxou a mão da mulher sentada ao seu lado — somos oficialmente um casal de marido e... mulher. — O homem tirou a luva branca da mão dela e deu um beijo demorado e babado na pele agora exposta, enquanto os aplausos ecoavam pelo salão — Jane, minha amada. Pensei, por dias e dias, qual seria a melhor forma de descrever o meu amor para você. Mas, não existem palavras que descrevam o que sinto por você. Meu sentimento sequer pode ser medido. Pobre é o amor que pode ser descrito e medido. — ele olhou para os convidados, sorrindo — Isso é Shakespeare.

— Isso é cafona. — uma voz extremamente fina repercutiu pelo salão. Todos olharam em volta, procurando o autor daquela intervenção. Uma garota baixinha cruzava os braços em frente a um vestido amarelo. Um grande laço, da mesma cor, pendia para o lado esquerdo da cabeça dela, preso nos cabelos pretos compridos. Em uma das mãos, a garota segurava um pote de vidro, onde uma aranha peluda se encolhia no canto direito.

— Anita, volte para seu quarto e vá assistir a algum filme. — o homem disse para a menina, com as sobrancelhas inclinadas.

—Um filme? Por que vou perder meu tempo vendo uma obra de ficção na televisão se já está acontecendo uma mentira bem na minha frente? Pai, eu não sou ignorante como os seus convidados. Você pesquisou "Frases de Shakespeare" no Google cinco minutos antes de subir aqui. Eu li o histórico da internet! Tarantina está de prova. — ela apontou para a aranha dentro do vidro. — Posso até ser nova, mas não sou cega. Eu vejo o que está acontecendo nesta casa. Eu. Vejo! — a cada palavra, Anita parecia mais adulta do que seus doze anos permitiam. Duas garotas gêmeas, da mesma idade que ela, enrolavam os cabelos loiros nos dedos e cochichavam sobre a situação. — Você sabe que se casar com ela fará de você um homem infeliz!

— Pessoal, peço desculpas. Anita está com dificuldades e...

— Me solta! — a garota começou a berrar, enquanto um rapaz agarrou seu braço e a puxou para fora do quarto. — ME SOLTA!

Enquanto sacudia o corpo na tentativa de se soltar, o vidro escorregou e caiu no chão. Vários caquinhos espalharam no chão, e a aranha saiu patinando pelo salão. Os gritos histéricos dos convidados misturados aos de Anita ficaram totalmente mudos quando o pé do mordomo pousou sobre Tarantina.

A melhor amiga de Anita, agora, era um borrão preto no chão que, em poucos minutos, seria varrido e jogado no lixo.

* *

— Depois do que aconteceu, todo mundo ficou nos comparando a ela, dizendo o quanto nós duas somos comportadas e fofas. — Luísa disse, rindo.

— Anita era loooooouca — completou Luana, girando o dedo ao lado do ouvido.

— Comportadas até quase se matarem pelo mesmo namorado, garotas. — Felipe bebeu o último gole do refrigerante — A melhor parte vem agora: as pessoas dizem que o pai de Anita era apaixonado por um homem, mas tinha muito medo de como aquilo poderia comprometer o status social que ele ocupava no momento. Ele era um cara famoso, um escritor de contos infantis. Pais conservadores não iriam comprar os livros dele para os filhos.

— Já li algumas obras dele quando estudei literatura brasileira, e tenho que dizer que ele é puro marketing. — Jorge cruzou os braços, a palavra em inglês soou engraçada com o sotaque latino. — Talvez você já tenho ouvido falar nele. El escritor Giancarlo Basile. — eu nunca tinha ouvido falar, mas assenti com a cabeça.

— No fim das contas ele se casou com a mulher?

— Sim. — respondeu Felipe — E ficou vivendo um relacionamento falso, provavelmente transando com garotos novinhos duas vezes por semana. Ele matriculou Anita aqui e nunca mais veio visitá-la. Não enviou nem um cartão no natal.

— O que leva um homem a abrir mão da própria filha para viver uma mentira? E, afinal, quem é a mãe de Anita?

—Dizem que Anita não era filha biológica dele. Ele a pegou para criar depois que um casal de amigos sofreu um acidente, algo assim. No começo, eles se davam muito bem. Até ela descobrir que ele gosta de brincar no lado colorido da força. Ela queria ajudá-lo e ele pirou. — o barulho de um sino repercutiu pela praça de alimentação, interrompendo Felipe. — Enfim, é uma história bem complicada. Anita sofreu muito, mesmo antes de chegar aqui. Mas, agora quem está sofrendo sou eu, porque tenho uma aula de Física pela frente. — ele se levantou, retirando a bandeja de comida.

Chequei o meu horário e descobri que minha próxima aula seria de Biologia. A caminho do laboratório, passei pela biblioteca. Abri a porta de madeira discretamente e senti o cheiro dos livros. Estantes e mais estantes contornavam todos os espaços dos três andares. No centro do primeiro andar, várias mesas estavam enfileiradas e alguns alunos estavam com os narizes enfiados nos cadernos escolares. O único barulho era o dos meus sapatos sociais batendo no chão.

Eu nunca fui um leitor voraz. Na minha estante, eu tinha uns dois livros do Senhor dos Anéis (li metade do primeiro), a biografia do Pelé (não li e não lembro porque comprei) e alguns livros obrigatórios do vestibular (li todos, são obrigatórios). Quando criança, minha experiência literária se resumia aos gibis do Chico Bento e os livros do Pedro Bandeira - exceto "A Marca de uma Lágrima" que, segundo meu primo, era livro de menininha.

Na segunda fileira da seção de livros infantis, encontrei o nome que procurava: BASILE, Giancarlo. Puxei um livro da estante e dei risada com a ironia do título: "A Pequena Aranha Tarantina". Centenas de ilustrações e frases curtas contavam a história de uma aranha que vivia se esgueirando pelas paredes de um castelo para ver o príncipe, seu grande amor. Extasiada a procura da melhor maneira de chamar a atenção do humano, a pequena decide medir o amor que sente, envolvendo o castelo em uma grande teia. A aranha termina o trabalho, mas o príncipe não percebe que aquela teia enorme era uma demonstração de amor (era só sujeira). Que merda de livro!

Antes de seguir para a aula, peguei mais um livro do autor na estante. Logo abaixo de GIANCARLO BASTILE, escrito em letras enormes, o nome da história estava estampado com uma letra cursiva: "A Menina Do Vestido Azul".

A Última Gravata VermelhaOnde histórias criam vida. Descubra agora