O desertor da herança

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NÃO contei nada ao Duqh sobre eu ter escapado (embora não considerasse que eu estivesse preso) no meio da noite. Tampouco sobre a perseguição dos marinheiros bêbados a mim e a confusão instaurada no bar.
Eu não conhecia Alera, porém o fato de eu tê-la salvado não a dava o direito de me entregar. Comecei a me arrepender do meu ato de heroísmo e querer por tudo que o gordo fétido que matei fizesse o que tinha a fazer com ela.
Minha mágoa só cresceu nos últimos dias em decorrência de uma série de fatores. O primeiro deles era a voz do miserável do bar gritando sobre a morte dos meus pais. Segundo, meu treinamento com Duqh não estava às mil maravilhas. Sem concentração. Sem respiração moderada. Sem foco. Eu não conseguia ser Donet, a esposa do padeiro; nem Argaro, o jovem aprendiz da alfaiataria; ou Mobion, o açougueiro de quarenta anos da rua de baixo. Nenhum deles conseguia me concentrar o suficiente para ganhar características no treinamento, e via, nitidamente, a expressão de decepção no rosto de Duqh.
Eu tentava. Juro que tentava.
E por último eram os burburinhos do Dia das Chamadas. Todos os anos todas as pessoas nas ruas e em todos os bairros dialogam sobre o Dia das Chamadas. É nesse dia que um jovem de quinze anos é convocado por um olheiro da sua signatura para começar os estudos na Sede. Simplesmente o lugar onde eram formados os maiores cientistas, curandeiros e poderosos do país. A Sede foi construída, em meus dados, há quase um século por um governante do país. Vez ou outra eu via nos jornais matinais e em livros jogados na rua que a Sede era uma escola para os maiores. Para os verdadeiramente escolhidos. Ponha os pés na Sede e mude seus conhecimentos e porque não você mesmo?
O primeiro ano se iniciava com jovens de quinze anos. Os três olheiros da minha Signatura estariam de olho nos jovens e cada um deles escolheria um para estudar nesse lugar. O que me resta, sendo um pobre coitado que dorme e acorda enfiado em becos, disfarçado, se escondendo da luz do sol, é saber que nunca vou pôr os pés nesse lugar.

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- Presta atenção! - Duqh me fez focalizar seus olhos verdes e compenetrados. - Zori! Pele...
- Escura... - entendi. Imaginei. Respirei. Imaginei. Foquei. Zori, isso mesmo: Zori. - Pele escura.
Meus olhos estavam fechados e minha respiração moderada. Minha pele era escura agora. Imaginei. Cada pedaço da derme, cada centímetro de pele era caramelada ao máximo.
- Cabelos... - falou Duqh, num breve sussurro.
Eu hesitei. Eu não podia pôr todo meu foco nos cabelos de Zori e esquecer minha pele escura. Então concentrei. Os cabelos... os cabelos eram...
- Brancos. - respondi, imaginando cada fio grisalho do homem da mercearia. Cada fio brilhante, quase um cinza. - Meus. Cabelos. São. Brancos. - disse compassadamente.
Agora foi a vez de Duqh respirar fundo. Um minuto depois, num silêncio instaurado, ele falou:
- Mãos...
- Calejadas e dedos grossos. Um anel de metal lúdico com pedra de ametista rara. - respondi, determinado.
- Muito bem, Zagkri. Ótimo, garoto! - parabenizou Duqh num murmúrio, sem parar por aí.
O treinamento seguiu por mais meia hora. Duqh me fez dezenas de perguntas sobre Zori e eu respondi todas imaginando as características no meu próprio corpo magricela e jovem. Ao final eu estava convicto que eu era Zori, o dono de mercearia. Mesmo com os olhos fechados eu era ele. Sentia absolutamente. Sentia meus dedos pesados e grossos, minha barriga projetada à frente numa saliência de gordura, minha pele escura, meus cabelos grisalhos, minha dor nas costas permanente... Zori.
- O primeiro passo da Morfologia você aprendeu, Zagkri. Experiências levam ao aprendizado permanente. Você ainda não está pronto para ser um capricorniano com dons de morfologia avançada.
- Estou aqui para aprender, Duqh. - considerei minha determinada primeira conquista de morfologia. - Não desistirei.
- Os passos da morfologia não são práticos. Há uma série de treinamentos e dura anos para que um capricorniano aprenda esses tipos de poderes. Não é à toa que muitos dos que iniciam no treinamento acabam se isolando por não conseguirem se transformarem no que querem de verdade. Leva anos.
- Que leve. - estava disposto a arriscar. - Não vou desistir.

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À noite Duqh e eu sentamos em um lugar fora da casa, ao lado de uns barris velhos, para admirar as estrelas. Me peguei imaginando nos meus pais e em como Duqh tinha sido atencioso comigo nos últimos meses. Ele me entendia. No fundo ele sabia o que eu era na verdade e os meus propósitos. Confiei nele cegamente como confiaria em minha mãe ou meu pai. E no fundo eu sabia o que ele era de verdade. Ele era um grande homem. Que está sozinho por escolha e não por falta de pessoas. Que gosta de pensar e se acomodar sozinho em sua casa, sem perturbações ou invasões na vida pessoal.
- O céu é uma imensa estrada, garoto. - de repente disse Duqh, dando uma fungadela. - Cada estrela é um ponto visível da alma de alguém que se foi. Todo o espaço ao redor delas é o acampamento que espera por nós. Um dia. Sabe, garoto... eu andei por todas essas ruas por quase um ano inteiro. De repente me cansei e me enfiei nessa casa, sozinho. Não encontrei o que eu procurava. Achei que nunca encontraria.
- Você é uma pessoa de boa índole, Duqh. - eu disse, com as palavras mais verdadeiras que pude expressar. - Todos que tivessem a chance de tê-lo como amigo seria confortável. Digo isso por mim.
- Um excelente filho você seria para mim, Zagkri. Tive apenas um filho em toda minha vida. Nasci na nobreza, apesar de não me importar nem um pouco com isso. Herdei todas as fortunas do meu pai, mas quando meu filho nasceu, eu esperei somente o tempo dele crescer para assumir em meu lugar a herança. Saí viajando pelas signaturas e perdi contato com meu filho. Eu desertei da minha posição, do meu poder. Dei tudo para meu único filho. Ele virou governante e hoje é o dono de tudo isso.
- Espera! Espera um pouco... - eu senti meus pulsos e pernas bobearem. - O governante é o seu filho legítimo?
- Sim. Passei quase um ano nas ruas de Capricórnia para cumprir meu pedido que fiz à ele. Sempre quis fazer parte das escolhas da sede. Então ele cedeu.
Nesse momento minhas palavras faltaram e meu ar trancou. Era como um soco tremento de realidade na minha cara.
- E quando pensei que deveria entregar minhas desculpas ao meu filho por não conseguir alguém... Você apareceu. - disse Duqh com um sorriso simpático e orgulhoso no rosto. - Você é um ótimo aluno e um exímio capricorniano, garoto. Tem tudo o que aprender nesse lugar. Eu, Duqh, como olheiro da signatura de Capricórnio, o escolho como meu aprendiz para entrar na sede. Boa sorte, Zagkri. Amanhã é o Dia das Chamadas.

Capricorniano, a lenda da sombraOnde histórias criam vida. Descubra agora