Reconhecimento da dor

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              ZAGKRI não estava mais conosco. Eu tinha me separado de Alera e estava preso em um quarto medieval, com paredes e teto revestidos de mármore, o odor de raízes crescendo no concreto do chão era insuportável. Arrancaram qualquer possibilidade de um passatempo de mim: um livro. Durante a batalha tentei projetar uma substância que neutralizaria todos os inimigos na batalha, feita à base de óleo purpúreo e folha de seda negra, planta do vale. Aprendi tais métodos com Margie Bonnevar, a professora de Libriania. Ela tinha conhecimento profundo de herbologia, assim como tinha de insetos. Natural, já que era o habitat dos seres que ela usava na própria cabeça. Agora tudo era vazio, um conjunto de tédio nada saudável, rudemente fortalecido com uma dor. Entreguei-me a ela como quem se entrega aos leões do vale, sacrificados pelo poder maior, pelo enfraquecimento, pela natureza severa da maldade, pelo terrível mal da feitiçaria, que cega os inocentes e abraça os culpados.

            Há um livro que li durante os primeiros dias que estive na Sede: Os dons de arte do signatário, de Gerald Mors. O escritor era virginiano e tinha posto coisas no livro que normalmente não seriam escritas por qualquer pensador. Gerald me tornou mais sucinto quanto a decisões e pensar na arte dos deuses me deu a oportunidade de saber detalhes do que Pandorius deseja. "Os deuses das signaturas tornaram-se figuras sacramentadas", assim dizia em uma das páginas do livro. Concordei com tal destaque. Gerald realmente tinha razão quando dizia que todas as pessoas tratavam os deuses antigos das signaturas com apoderamento de fé. Quando criança minha mãe me deixou uma vez um embrulho na cama. Um presente. Era um saco feito de palha, amarrado a um fio de vegetal. Abri-o logo após ela me dar sinal verde para que eu o fizesse:

- Abra, Ejes. É seu, meu garotinho. - suas palavras doces ainda permaneciam em minha mente.

Abri o embrulho com cuidado, lembro de ter ficado com um sorriso no rosto. Dentro tinha um exemplar de "As viagens de Rufol". Fiquei contente e abracei-a por alguns segundos, exteriorizando meu apego ao livro. "As viagens de Rufol" contava a história de um garoto que saía da signatura Escorpião para se aventurar nas montanhas pra lá do Império da Sede, era assim que falava no livro. O li cinco vezes e soube de todos os pensamentos, métodos e ações de Rufol nas montanhas. Desde o dia que ele encontrara Dore, o cientista, até Marmey, o homem com dom.

- É belo, mãe. - falei.

- É interessante, meu garotinho. Eu sabia que você ia gostar. - ela deu-me um beijo e me pôs para dormir.

         Quando soube da proposta do meu olheiro para me levar para a Sede, mamãe discordou totalmente disso. Ela sabia que meu lugar era ali e sempre seria. Meu olheiro era um antigo professor, que viu em mim uma possibilidade de entrar em contato com algo mais desafiador, assim disse a ela. Demorou exatamente dois dias e duas noites para que ela cedesse e me deixasse entrar na Sede. Agora eu daria qualquer coisa para estar novamente com ela.

                                                                                               * * *

        Quatro noites se passaram e Pandorius nos tirou daquele lugar. Da prisão, e não da cidade abandonada. Todos, enfileirados em um campo aberto vigiado por capas vermelhas, estavam desgastados. Reconheci todos que eram próximos a mim: Duqh, que tinha a barba ainda maior e tinha fuligem no rosto. Bertra, avó de Zagkri, tinha a pernas trêmulas e a aparência cansada. Kerb trazia no rosto mais um semblante de incômodo do que de pavor. Senti dor por ela por um momento, como se quisesse protegê-la, atirar-me aos pés dela e a vigiasse. Desviei o olhar. Sra. Wolly pareceu ter perdido vários fios de cabelo e vestia uma túnica em azul escuro rasgada. Por último avistei Alera. Ela tinha um aspecto cadavérico, rude e que sacrificava os dias pelas noites e as noites pelos dias. Ela me devolveu o olhar. Talvez estivesse pensando a mesma coisa de mim.

        Já Pandorius tinha um rosto preocupado. Ele ainda tinha a aparência de dias atrás. Trocara de corpo, como uma serpente. Adquirira um corpo novo, com uma cor esverdeada e olhos assustadoramente negros, duas saliências sobre a cabeça pareciam-se a chifres envergados.

- O usurpador está morto! - falou em voz alta em meio ao silêncio. Percebi que se referia a Órius. Ele teve mesmo a coragem de matar o novo diretor? Realmente nunca duvidei que ele quisesse matar pessoas. Ele sempre fez isso, a vida inteira. - De agora em diante meu caminho se torna mais fácil para saber quem está do meu lado para completar minha revolução! O medalhão está comigo, um dos poderes que poderá me trazer a parte final da revolução. - encarei Pandorius por um segundo. Ele realmente tinha tomado o medalhão, não tinha motivos para mentir. O medalhão estava bem escondido na Sede, mas como a destruição do local que veio abaixo ficou mais fácil dele sentir o poder do objeto. Ele continuou a falar: - A última parte de meu poder, transformando-me em um deus de todas as signaturas, dando-me o dom do décimo terceiro deus, o incumbido de todos os poderes sobre os homens, está em um garoto. Vejam só! Um garoto guarda a chave da conclusão de minha transformação! Mas ele não está aqui... o centauro idiota o libertou de me enviar o poder das estrelas...

Meu sorriso foi imediato. Alera também sorria, acatada. Zagkri tinha se livrado de Pandorius. Ele não estava morto...

- Mas ele teve o que mereceu. O centauro o levou com os últimos instantes de vida. Ele não resistirá, talvez já esteja morto. Zagkri Eaden, o garoto que guardou o poder mais cobiçado das signaturas, dádiva dos deuses, o capricorniano que carregou a terceira estrela consagrada consigo por toda a vida, mesmo crescendo no mesmo ventre com outro corpo. - Pandorius olhou Kerb. Realmente. Zagkri e Kerb eram gêmeos. Ele se aproximou dela. - Exato. Achou que eu não adivinharia qual de vocês dois levava a terceira estrela? Poder como esse não pode ser dividido! Achou que poderiam enganar um dos meus seguidores com essa história?

Kerb o olhou como se nada entendesse, assim como todos os presentes. Então Pandorius chamou Almos Renes. Então Zagkri estava certo. Almos pertencia aos seguidores do Mestre das Sombras.

- Almos contou-me que tentaram armar para que eu caísse do trono! Não deu certo garotinha... você e seu irmão são tolos! Você não herdou nada! Nenhuma nesga de poder de seus pais! O gêmeo herdou tudo! Você não me servirá...

- Do que está falando? - Bertra, a avó de Kerb, ao lado dela, perguntou a Pandorius, mesmo com a voz pesarosa.

Pandorius olhou para Almos e caminhou para longe, dizendo uma última coisa:

- Acabe com a garota.

Almos Renes ergueu a mão, formando um arco que se transformou em um bastão de energia. A capa vermelha balançando ao ar. Senti alguém em meu ombro e uma voz: "Covarde". Era Hasgard.

Um segundo depois o bastão foi enfiado no peito dela. Zagkri acabaria com Pandorius e Almos somente fazerem aquilo. Ela caiu ao chão e a neta gritou. A avó acabava de dar a vida por Kerb.

Então a terra tremeu... e todos caíram.

Capricorniano, a lenda da sombraOnde histórias criam vida. Descubra agora