O guerreiro e a donzela

197 23 2
                                    

EJES estava com a aparência de um defundo há muito enterrado e para meu desespero, ainda morto. Seus olhos não tinham mais brilho quando Pólipus os abriu e os iluminou com o feixe de uma lanterna pequena. Recomendou que eu e o garoto sagitariano de nome Loquário, esperássemos lá fora, ou então retornássemos para a terceira aula.
Recusei.
Eu tinha construído uma amizade tão significativa num elo tão compacto com Ejes em tão pouco tempo que surpreendi a mim mesmo por estar fazendo aquilo. Era de certa forma uma prova de cumplicidade através de nossa signatura. Ejes era capricorniano, assim como eu, estávamos naquele lugar, cada um com seu propósito, porém ele era o que muitos amigos não são. Irmão.
Pólipus, ainda com o rosto cansado (e eu lembrava bem depois que saiu com Alera daquela sala para os deuses sabem onde) e a corcunda incomodando.
- O capricorniano está bem. Apenas o dei um medicamento para o relaxamento dos ossos e músculos. - disse Pólipus numa rouca voz. - O que ocorreu a ele, sabem?
Fiquei imóvel à pergunta. Era o tipo de pergunta que eu temia e agora estava esperando por uma resposta minha.
- Não sei. - menti. - Ele conversava comigo quando passou mal. Na verdade, não o vejo mal desde que o conheço. Sempre está bem e feliz, então... Não me atrevo a relatar o que ocorreu.
O velho homem olhou de mim para Loquário e dele de volta para mim. Sempre com o semblante cético e a boca numa linha fina de incompreensão.
- Bom... voltem à aula! O garoto capricorniano irá perder este dia de aulas, mas amanhã acordará disposto. - disse Pólipus, mexendo nas luvas marrons nas mãos.
- Então ele passará a noite nesse quarto? - perguntei, preocupado. Era demais para mim. Eu estava sozinho agora. Ejes trancado numa sala de enfermaria e Alera presa em alguma solitária na imensa Sede. Estava por minha conta própria.
- Sim, senhor. Ainda tenho que examiná-lo mais profundamente para proceder o diagnóstico. Creio que levará algumas horas de análises. - o velho indicou que retornássemos à sala, mas parou e disse uma última coisa: - É o segundo problema com capricornianos somente no dia de hoje. E vejo que você é o único que restou, garoto. - seus olhos me percorreram sombriamente, a medida que sua voz embargava e ele apertava os dedos nas luvas médicas: - Tenha cuidado. Não saberei se vou te ver daqui a algumas horas e a cota de capricornianos estará extinta aqui na sede.
Loquário e eu retornamos a passos rápidos pelo corredor, enquanto Pólipus fazia a porta da sala médica ranger e bater forte quando entrou.
- Eu realmente nunca vi algo como o que aconteceu com o seu amigo. - afirmou Loquário, mostrando solidário modo respeitoso. - As histórias devem ser reais...
- Histórias? - perguntei, enaltecendo a voz. - Que histórias?
- As histórias das fogueiras. Nunca as escutou? - quando ele viu que neguei com a cabeça, continuou: - Em uma delas eu ouvi as palavras de meu avô. Nós, sagitarianos, acreditamos bastante na conexão de homem com animais, isso não quer dizer que ignoremos as incríveis variações da conexão do homem com o espírito. Ou com sombras. Havia um guerreiro que amava uma donzela. O que os separava estava concentrado entre dois gigantes morros. O guerreiro era sagitariano. Quando digo isso, o guerreiro era por completo sagitariano. Nascera metade homem e a outra metade os deuses de sagitária fizeram animal. Um belo equino negro. Centauro, o chamavam. Nunca poderia amar a donzela como um homem comum. Então antes de morrer o guerreiro encontrou sua donzela banhada a sangue no rio corrente do lugarejo. Seus olhos choraram em vermelho e seu coração foi perfurado com uma espada por ele mesmo. Ambos morreram ali mesmo. Mas sabe porque ele decidiu morrer por ela? - ele fez uma pausa e me olhou, enquanto eu pensava. - Porque ela carregava um fruto dele. O sangue era do filho que viriam a ter. Ela morreu antes de ver o filho entre suas pernas. Porém mais do que sangue havia algo mais ali antes do guerreiro encontrar sua amada. Alguém levara o ser para longe, que viria a ser um aluno da Sede anos depois. O filho do guerreiro e da donzela. Minha vontade é conhecê-lo um dia.
Eu o olhei e relaxei. Era uma bela história. Mas não havia entendido a conexão dela com o que Loquário e eu conversávamos. Mas ele retornou à história rapidamente:
- Esse garoto, diziam, durante seu primeiro ano na Sede provocou dezenas de brigas e machucou muitos eleitos. Ele era como o pai. Híbrido. Vez ou outra tinha necessidade de assustar quem lhe impusesse medo. Porém a certa altura todos o temiam mais do que as próprias sombras. As maldições que se seguiram todos os anos a partir daí foram ocorrendo. Alunos passam mal. Enlouquecem. Tem acesso de azar. Morrem...
- Morrem? - perguntei, estarrecido.
- Isso mesmo! - confirmou Loquário. - E dizem que é graças ao filho do guerreiro e da donzela.
Crer que seria mito ou coincidência era o que eu estava tentando fazer. Encarei Loquário com maus olhos e retornamos à classe.

£ £ £

A aula tinha atingido a metade de seu tempo e o professor explicava sobre luzes do céu. Ele era magro e usava um bigode amarelado, bem penteado e a postura ereta. Seus trajes comportados não comportavam em nada com um sorriso ferrenho que ele tinha no rosto. Eles eram na cor preta e cinza.
- Já soube! - falou ele quando eu sentei na minha carteira e todos me olharam. - Um foi retirado da classe por mal comportamento. Outro teve um ataque e teve que ser retirado à enfermaria. Como se chama? - ele me apontou.
- Zagkri. - pela segunda vez eu dizia meu nome naquele dia. Suspirei e o fitei.
- Não me decepcione, Zagkri. Represente a sua signatura por eles. - disse o professor capricorniano com leveza. - Ah, meu nome é Hasgard McGardie. E soube que Almos andou insultando a signatura capricorniana com dureza e rudemente. - ele andou pelas fileiras e todos abafavam risadinhas pelo seu andar jeitoso de quem está prestes a entrar no palco de uma premiação. - Não se importe, Zagkri. - falou meu nome com ênfase. - Almos atingiu a maturidade muito tarde e odeia perder. Acredite! O conheço bem. Não se importe. Ele não o ofenderá novamente. De maneira alguma.
Eu sorri e ele retornou a falar das luzes. Finalmente consegui ver o mesmo brilho bondoso dos olhos de Duqh nos de Hasgard. Tranquilizei-me.

Capricorniano, a lenda da sombraOnde histórias criam vida. Descubra agora