Amargo passado

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        Lembro de ter olhado pela janela e visto um brilho de chuva ao longe. Em meus sonhos tudo era tão claro, mas a claridade se tornou tão tenra que minhas habilidades de sonhar viraram cinzas. Me sufocaram de tal modo que meus pulsos, pernas e pulmões se transformaram em membros compactos de mim. A realidade era cruel e tomava meu coração e retirava toda a vida assim como uma serpente faz a um rato. De mansinho e então de repente. A dor é rápida, mas a incompreensão é eterna.
                          ○ ○ ○
- As maçãs frescas e os pães quentinhos. - retornou a avisar meu pai, que estava com as pernas cruzadas e os fios de cobre do rádio nas mãos, enlaçando um a um nos orifícios das antenas.
       Minha mãe lavava uma par de louças e sorriu quando meu pai me repetia pela terceira vez: "Maçãs frescas e pães quentinhos". Não satisfeita ela saiu do seu cantinho na pia de mármore e me beijou por todo o rosto. Lembro de ter dado um passo atrás tirado as mãos dela comprimindo minhas têmporas e limpado minha cara em busca de ar.
- Zagkri, não quero que converse com aqueles garotos novamente! Está me entendendo? - aconselhou ela a mim, que balancei a cabeça num gesto de super entendimento. Ela se referia aos moleques que me deram um soco há uma semana enquanto eu brincava sobre latas que carroceiros colocavam nos meio-fios. Os baderneiros me mandaram descer e eu não obedeci. Aprendi acima de tudo a não ser capacho de pessoas que apesar de terem o sobrenome "Superior" não significam nada. - Essas ruas são bastante perigosas e seu pai concorda comigo, não é Rhony?
- Claro que sim. - meu pai continuava concentrado nos fios de cobre. Minha mãe o repreendeu com um cutuco e ele deu um salto de onde estava r balançou diversas vezes a cabeça me fazendo ri. - Ah, sim, sim! É filho! Você não esqueceu não é? Maçãs frescas e pães quentinhos.
      Eu entendi. Saí porta afora com mais um beijo de minha mãe em ambas as bochechas e as mãos pesadas de dedos grossos do meu pai bagunçando meu cabelo. Corri pelas ruas e calçadas com o dinheiro dentro do saquinho de couro que meu pai me fez para as economias. Cumprimentei o latoeiro, o cocheiro e as damas que se sustentavam pela beleza divina nas portas de lojas, passei pelo depósito de palhas e pelo centro de carroças. Já sentia meu cabelo grudar na minha nuca e testa com o suor. Eu transpirava e minhas pernas eram tão rápidas quanto as rodas de uma carruagem dirigida por um geminiano.
       A vendinha tinha aparentemente tudo o que um cidadão capricorniano precisava para não passar fome pela semana inteira. Anuhi sempre abria um sorriso decente e cheio de ego quando me via.
       Anuhi era o dono da vendinha e tinha cabelos cinzentos como a neblina, o suspensório de suas roupas meu pai havia feito havia muito e o usava até hoje.
         Retornei com as maçãs e os pães e um saco de costuras. Passei dessa vez boa parte do caminho andando, tentando equilibrar minha respiração com o poder de controle do meu pulmão. Dois terços então resolvi correr. Os pães e as maçãs bem protegidos no saco às minhas mãos.
      Pisei em uma poça de água suja de fezes de cavalo e pulei por uma calçada cheia de buracos de areia. Pouco antes de chegar à minha casa e entregar finalmente as maçãs à minha mãe para que ela fizesse sua deliciosa torta e os pães para meu pai forrar o estômago para o jantar, uma multidão de cidadãos capricornianos mantinham seus olhos para o alto, em direção ao telhado de minha casa. Apesar da falta de economia ou de soberba que minha família tinha, nós não éramos parte de uma nobreza, tampouco nos orgulhávamos de ter o que muitos diziam "alívio financeiro", porém os dois andares do meu lar fazia com que ele fosse um dos maiores da rua abaixo.
       Meus olhos tremeram e saíram de foco quando com os gritos de amedrontamento das pessoas veio um passo a frente de duas pessoas acima do telhado. Ambas estavam de mãos dadas e o queixo erguido, olhando em retilíneo para frente. Meu pai. Minha mãe. Ela ainda com o vestido sujo com farinha. Ele com a barba crescida e a mesma concentração de quando os vi ao passar pela porta da frente algum tempo atrás.
      Os dois despencaram de cima como um pássaro que tem um ataque em pleno voo e desaba no chão. As pessoas ao redor ergueram as mãos para cima e eu só pude deixar os pães mergulhados numa poça de água na rua e aos tropeços correr em direção ao centro do semicírculo formado por capricornianos. Eu nunca cheguei a lembrar quantos passos eu dei, se minhas pernas doíam, se meu coração estava acelerado ou se enxergava alguém à minha frente além dos meus pais em queda livre. Certamente não. Estanquei e caí de cara no chão e fui abraçado por três mulheres que taparam meus olhos. Mas meus ouvidos... eles estavam bem alertas. O barulho do corpo dos meus pais contra as pedras da rua nunca saiu da minha cabeça, seguido do grito e choro das mulheres que me abraçavam em seguida. Eu me debati e gritei. Gritei desesperadamente em busca de forças e de um sinal que me mostrasse que eu acordaria no momento seguinte, abraçaria os meus pais e tudo estaria bem. Tudo estaria novamente nos eixos e eu veria os olhos lindos de minha mãe me enfeitiçarem, seus beijos exagerados e sua voz doce me contando histórias. Ou dos hábeis dedos do meu pai, enrolando cada fio de cobre no rádio e espalhando meu cabelo, enquanto fazia minha mãe reclamar de ter que fazer outro penteado.
      Enquanto a mulheres me abraçavam chorando e pessoas gritavam por todo lado eu me esquivei e vi por baixo do braço de uma das mulheres os olhos do meu pai me encararem estáticos. Minha mãe olhava para o outro lado. Ambos deitados e dormindo para sempre num berço de sangue.

                           £ £ £

        Enxuguei os olhos e respirei fundo. Eu já havia encontrado o meu dormitório e confortavelmente me estabelecido. Desde o momento que saí dos limites do lago, tentei me concentrar numa força que Duqh me ensinara. A força da tolerância. Seja tolerante consigo mesmo. E era o que eu estava fazendo. Eu vi minha imagem refletida no lago. Vi-a mexendo os lábios e sussurrando que eu tinha matado meus pais. Era perturbador, porém não me desestabilizou. Saí o mais rápido que pude de lá.
     Fui para a cama antes mesmo de notar que minhas pálpebras pesavam. Procurei reverter meus pensamentos ao dia de amanhã. A sra. Wolly nos comunicou depois que nos juntamos novamente que no dia seguinte iniciaria a primeira aula do ano letivo. Eu, claro, estava ansioso assim como Ejes, que pulou de alegria e tentou se intimidar quando me viu olhar estranho.
       Um barulho na minha porta me fez despertar do meu início de sono. Levantei e vi a claridade do meu quarto por causa da lua lá no alto. Pus a mão na maçaneta e girei. Minha surpresa foi tão grande quanto saber que Duqh era o olheiro. Alera estava de vestido de seda básico, ali de pé, me olhando com timidez.
- O que foi? - ela perguntou, erguendo uma sobrancelha. - Posso entrar ou quer dar mais uma olhada?
Eu sabia que tudo isso era provocação de sua parte. Retirei meus olhos do vestido que se ajustava perfeitamente ao seu corpo esbelto e a deixei entrar.
- Como ousa vir aqui depois de tudo que aconteceu entre nós?
      Ela levantou a barra do vestido e sentou em minha cama. Franzi a testa, porém não disse nada. Esperei que ela me desse uma resposta sensata.
- Espero que nossas diferenças, Zagkri, terminem aqui. Não posso mais deixar que tenha desconfianças de mim. - ela falava isso como se tivesse me feito algo tão grave como roubar um doce meu. Porém nós dois sabíamos que era tudo mais difícil. - Nunca quis prejudicá-lo.
- Sim! - a interrompi, fechando a porta a atrás de mim. - Não só quis me prejudicar como também me quis morto. Sério? Me entregar para um mercenário em troca de uma vaga da Sede?
- Então você já entendeu tudo? Muito bem Zagkri. - ela levantou e deu um breve sorriso acanhado. - Me poupa tempo. Na verdade quando soube que ele seria um dos olheiros decidi não perder a chance de vir para cá. Sei que não teria outra oportunidade e não perdi tempo. Então pensei em você. Eu sei que você tinha acabado de me salvar daquele brutamontes mantando-o e que Rashe era o melhor amigo do bêbado pevertido. Juntei o útil ao agradável, com o perdão a você. O entregando a ele seria a forma que eu ganharia a confiança do olheiro e seria uma eleita.
      Eu ri de Alera e de como ela foi audaciosa com o plano.
- Você certamente conhece mercenários, não é? - a perguntei. - sabe que o envolvimento com eles por interesse é um tiro no pé. É bem arriscado, mocinha.
- Me chame de mocinha novamente e quebro o seu braço, capricorniano. - ela deu uma piscadela e um sorriso de mestre de cartadas. - A questão é essa. Eu expliquei-lhe sobre o ocorrido, me resolvi e agora retornarei ao meu quarto.
      O fato de Alera invadir minha privacidade no meio da noite e retornar ao seu dormitório com os ombros mais leves me deixou extasiado. Segurei-a pelo braço e a impedi de passar pela porta.
- Ora, ora... - ela me olhou como se encarasse o seu par em um baile. - quer que eu durma esta noite aqui, Zagkri? Me perdoou tão rápido!
Eu a larguei.
- Me responda uma questão. - eu a fitei com discernimento e ceticismo. - Por que quis tanto vir para a Sede a ponto de me entregar para o seu olheiro?
- Pelo mesmo motivo que todos estão aqui. Inclusive você. - ela me analisou friamente. Fiz o mesmo a ela. - Todos temos segredos Zagkri. Você não é o único que está aqui para saber verdades.
     Por um minuto inteiro o silêncio se instaurou no meu dormitório. Alera e eu respirávamos o mesmo ar pesado do ambiente fechado. Então ela falou por fim:
- Meus pais se casaram muito novos. Quando nasci eles já tinham um filho. Cinco anos mais velho que eu. Foi de extrema dificuldade aceitarem que Dam fosse escolhido por um olheiro para vir à Sede. Meus pais sentiram orgulho, claro. Dam era um exímio leitor e eu o amava. Eu sentia por ele um amor fraternal de imenso poder. Eu tinha dez anos quando ele partiu para cá. Meus pais adoeceram e eu os perdi dois anos após Dam ter partido. Eu sabia que havia ocorrido algo a ele e queria descobrir o que era. - ela olhou para mim com os olhos lacrimejando. - Você nunca se perguntou para onde vão os que entram aqui na Sede depois? Onde estão agora?
      Eu havia pensado diversas vezes naquela pergunta, mas ela nunca me confrontou como um monstro.
- Por mais que eu durma, a imagem de Dam morto sempre aparece em meus pesadelos.
- Alera... - quis convencê-la a não fantasiar demais o que ela não sabia, mas ela continuou:
- Zagkri, tenho certeza que meu irmão está morto. - ela o fitou com nervosismo. - Alguém que está na sede ou tem alguma relação com ela é responsável por isso. Sei a sua história Zagkri. Acredito em você. Quem matou meu irmão também matou os seus pais.

Capricorniano, a lenda da sombraOnde histórias criam vida. Descubra agora