Gotas na lápide

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MINHAS patas doem. Haviam se passado mais quilômetros dali do que eu pensei, mas era difícil trotar. Enfrentei o Mestre das Sombras havia pouco tempo, e agora eu estava fugindo, resgatando Zagkri Eaden. Ele estava desacordado sobre meu dorso, preso a um cordão de cipó e fibras de folha silvestre. O Mestre das Sombras o derrotou. Ele estava acabado e sem chances de continuar de pé. Mais um tempo preso naquela cela durante a batalha, a terceira estrela não existiria mais. O Mestre das sombras o transformaria em pó e tiraria todo o seu poder.

Quando encontrei-os no interior do vale, Zagkri estava possesso, lutando bravamente com o grande Mestre das Sombras. Pareceu ter controle e noção do que fazia. Imponente, se arriscava a todo tempo e sondava suas forças a um limite máximo. Ele o derrotou. Ele conseguiu o que queria. Nem tanto. O poder ainda estava dentro de Zagkri, guardado.

Cavalguei, como o garoto em meu dorso, por um dia e uma noite. Chegamos a uma estrada com um vale subdividido pela direita, cortando caminho até um rio corrente. Lá havia um casal de lavradores, que conversavam quando chegamos.

Retirei-o das costas, o segurei longe do chão por um tempo, então o pus lentamente em uma cama de folhas secas. Um dia inteiro e ele não despertara. Não me desesperei. Aguardei por um sinal, já que sua respiração estava atendendo às necessidades.

Durante a noite cuidei de seus ferimentos. O garoto tinha queimaduras por diversas partes da pele, provocadas pelo calor do poder do Mestre das Sombras. Manchas de sangue mancharam as vestes e um dos olhos estava inchado, roxo como uma fruta de Camágides. O olhei fixamente, preocupado. Como eu precisava de Krame ali conosco. Ele havia me curado após o incêndio na floresta, e com certeza ajudaria Zagkri a reagir.

Ergui-o lentamente, cuidando para não machucá-lo. Ouvi um estalo e em seguida senti o corpo dele tremer. Resisti. Toquei-o de leve nos braços, forçando o indicador contra a pele. Haviam ossos quebrados. Dois, pelo que senti. As pernas também tinham machucados. Em uma delas algum osso estava fraturado. Encarei os ventos, pedindo ajuda aos céus. Meu coração estava naquele medalhão, se pelo menos eu tivesse a chance de tê-lo naquele momento comigo estaria tudo bem com o jovem capricorniano. Eu o doaria um pouco da essência e estaria tudo bem novamente. Quando o sol se pôs, tentei buscar alguns nabos e um pouco de água no poço dos lavradores. Passei pelo varal e cheguei à horta. Um barulho fez as vestes do lavrador sacudirem. Controlei a respiração e os cascos. Sem barulho. Sem barulho. Em seguida atingi os limites do poço e ergui o balde com a água. Arranquei o balde da corda e levei até o garoto.

Os nabos acabei devorando, mas metade da água tive que tentar despertá-lo de novo. O ergui e banhei seu rosto com o restante. O sangue foi lavado de suas vestes, mas os olhos não foram abertos. Senti uma desesperança crucial apoderar-se de mim.

Dois dias se passaram e o céu estava de volta com as nuvens pairando no alto e os ventos regressando a rota natural. Zagkri não despertava e isso era amargo, odioso, quase imperdoável. Eu não podia acreditar...

Tomei a decisão de caminhar pela estrada por mais tempo. Levei-o nos braços, trotando por outra estrada. Encontrei um velho casebre, revestido com uma lona e ferro verde. O espaço era pequeno, mas era bem mais escondido de tudo. As árvores se fechavam ao redor do lugarejo, os galhos revestiam o telhado com uma camada de folha e outra de flores. O pus na sala, forrada com folhas e cipós entrelaçados. Antes que eu pudesse sair, algo aconteceu. O corpo de Zagkri sacudiu e de repente seus olhos abriram, reviraram e emitiram não mais que um branco-avermelhado. O ergui, depressa, passando pela porta e arrebentando a madeira velha. O corpo de Zagkri Eaden se retorcendo, cuspindo bolhas de algo verde, seguido de um vômito amarelado com sangue. Se debateu por tanto tempo que seus osso pareceram triplicar as fraturas. Tentei segurá-lo, impedir que fizesse algo mais ameaçador, no entanto, tudo já era em vão. Ele parou de se debater, parou de vomitar, parou de quebrar os ossos. Eu só não esperava que o seu coração parasse.

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Já enterrei Pérya, Namida, Domegard, Fiper, Unella, Daion e Risben. Pérya era divertida, sagaz e rápida. Tinha uma parte equina linda e os cascos reluziam quando ela trotava. Enterrei-a quando voltamos em uma viagem. Um caçador de centauros a assassinou, mas eu escapei. Namida tinha apenas doze anos centaurinos quando se perdeu do grupo. Éramos em seis e Namida havia recolhido frutos no meio do caminho. Após uma busca de duas noites e uma manhã a encontramos com os órgãos fora da barriga, uma faca estava enterrada próximo às costas. Domegard era o terceiro filho de um terceiro pai de um vilarejo de centauros. Éramos amigos desde que nascemos, à beira de um abismo. Brincávamos durante um inverno rigoroso, sobre a neve que encheu o vale. As patas de Domegard eram resistentes ao frio, mas não a uma queda. Pisou sobre a neve que cobria uma pedra falsa de um buraco. Segurei-o com força, tentando puxá-lo para a superfície, mas a neve deixava minhas patas lisas. Ele dispensou minhas mãos e foi encoberto pela neve, tragado pelo buraco. Fiper e Unella eram casados. Quando me separei de todos do vilarejo, eu os encontrei em uma casa às margens de um lago. Nunca pensei que centauros existisse ali, mas foi o que ocorreu. Fiper me dava chá de flores secas e Unella me fazia dormir. Fiper me ajudou a caçar pássaros que acabavam com a colheita. Unella me ensinava a adubar a horta. Fiper e Unella se foram quase ao mesmo tempo. Fiper adoeceu quando um corvo lhe bicou o olho, morrendo uma quinzena depois. Unella se foi uma noite após, infelicitada. Daion era um legítimo guerreiro. Ensinou-me a lutar e me defender. Tinha um belo cabelo que se estendia pelas costas, o que o dava o privilégio de imitar uma crina. Era um centauro de crina. Foi ferido no abdome após uma batalha com Vanaby, um centauro do oeste, combatente e feroz. Então veio Risben pouco tempo depois. Ela era a centauro mais magnífica que já havia visto e provava ser temível, acima de tudo. Uma lança a matou e eu matei o homem que jogou a lança. As lágrimas derraram por ela como o sangue dela derramou por mim. E ela se foi. Assim como todos eles. Cada um deles eu fiz um buraco na terra e os deitei. Os fiz descansar em outro lugar. Grato por ter sido parte de mim. Parte dos centauros. Parte da bravura que habita na essência de um coração de centauro.

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Zagkri Eaden foi o primeiro que enterrei que não fez parte da família de centauros que tive por toda minha vida. Mas acabou ganhando espaço na primeira família de capricornianos que venho a ter. Sob a chuva eu admiro o jazigo, a lápide sendo lavada pelas gotas da chuva e a terra recém colocada umedecer. Não havia mais nada que o garoto pudesse fazer. A estrela havia se apagado, o poder havia se enterrado, o herói foi embora. Havia perdido a batalha. Os deuses estariam orgulhosos da sua signatura. O Mestre das Sombras vive e só nos resta ajoelharmos perante ele. Não há escolha...

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O casebre ainda era útil para mais uma noite. A chuva lavava o telhado e uma torrente se revelava lá fora. O primeiro trovão rugiu e eu me aqueci na sala com uma lamparina. Quando o sol se erguesse no horizonte pela manhã eu iria procurar por sobreviventes e contá-los sobre a terceira estrela. Outro trovão, mas dessa vez pareceu atingir a terra. Meus olhos se prostraram na janela quebrada e mesmo como a chuva forte na escuridão, mirei o espaço de terra atrás do casebre. Tinha algo errado. Tomei a lamparina nas mãos e corri para o lado de fora. A chama se apagou. Larguei a lamparina no solo e corri em direção a sujeira no terreno. Tinha terra para fora do buraco e a lápide tinha se partido em quatro pedaços desiguais. O buraco estava fundo como quando cavei. Ele não estava mais lá. Trotei em direção ao vale, seguindo pelo caminho e chegando à estrada. Por toda ela havia pegadas de lama. Não era possível. Como isso aconteceu? Como ele saiu e caminhou tão rápido? Minha respiração foi bloqueada. A esperança voltou. Agora eu pude sorrir. Minhas patas pularam no asfalto. Eu estava errado!
A terceira estrela voltou a brilhar.

Capricorniano, a lenda da sombraOnde histórias criam vida. Descubra agora