A primeira queda do Mestre das Sombras

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O CHEIRO de alho forte e carne besuntada, na verdade, vinha da cozinha da velha senhora e não da própria, que convidou-me a entrar no minuto que subi os degraus da varanda de sua casa.
Peguei-me cogitando. O governante era o assassino dos meus pais, o mesmo governante que tinha responsabilidade sobre todas as signaturas e regiões isoladas que demarcavam território no país, o mesmo que era inteiro responsável da Sede e que recebeu a todos quando entramos naquele lugar, com um terno imperial e um sorriso catalogado, instigando uma tolerância abnegada. E além de tudo, o mesmo governante filho de Duqh. A velha mulher havia dito que ele era o grande ponto de colisão de uma guerra que ela nunca quis rever, e que agora eu seria uma válvula de escape para que Pandorius, o governante, começasse uma nova batalha a favor do poder e da maldade revolucionária. Será que Duqh sabia disso? Será que escondeu de mim tal informação? E para quê? Me proteger, limitar ou levar-me a um penhasco e jogar-me em queda livre? Pensei por um minuto e encarei novamente a realidade com a velha senhora me convidando a sentar à mesa na cozinha.
- Espero que você esteja com fome, querido. - disse, pondo a bengala sobre a mesa e se dirigindo ao fogão próximo, pondo uma boa quantidade de salada no prato e dois pedaços de carne besuntada a molho negro. Então, me serviu. - Desculpe não avisá-lo sobre nada ou esclarecer fatos sobre os Halles. Achei que não seria necessário dar tais informações a um garoto que, pensei eu, fosse um covarde. Mas vejo eu que você é mais esperto do que pensei. - ela circulou a mesa com passos mais rápidos e sentou-se ao meu lado, enquanto eu olhava para a salada, sem fome. - Você aprendeu um truque capricorniano há muito extinto e que necessita de bastante controle. Poucos que nasceram capricornianos conseguem obter êxito em tal dom. Você, por exemplo.
- E como a senhora soube que eu estava usando um truque de transformação? - respirei ao sentir pouco a pouco o calor da lareira me aquecer.
- Instinto de avó, talvez. - respondeu ela, e isso me fez cogitar perguntas.
- A senhora é mãe da minha mãe? - perguntei, tenso.
- Sou mãe do seu pai. Me chamo Bertra Astery. - ela me sorriu e pôs sua mão enrugada e com unhas mal pintadas sobre a minha. Apertou. - Oh, meu querido... como você cresceu, deuses! Você parece-se com Rhony na sua idade, impressionante. Meu filho o amou muito e eu sabia muito bem que sua mãe nutria a mesma coisa por você, Zagkri. Eu o segurei recém-nascido e o olhava no berço com aqueles olhinhos de pérolas das montanhas benevitas. - ela passou os dedos pelos meus cabelos e acariciou meu rosto com os dedos trêmulos e sem força. - Você está tão belo, forte e possui o que o seu pai sempre admirou em alguém: coragem. Rhony sempre me fez ter receio quanto a quantidade de coragem que ele possuía, porém Aris nunca teve isso. Sempre apoiava o nosso filho em tudo.
Ela parou um pouco, teve de parar para se tranquilizar ao lembrar de meu pai. Eu sabia que ele era tão importante para ela quanto era para mim e que isso nos dissolvia de um sentimento que somente nós sabíamos. No entanto, procurei palavras para perguntar:
- A senhora... sabe porque meus pais... - a palavra me fazia tremer. Eu não a dizia. Era traumatizante dizê-la, como se fosse algo maligno atraente. Não quis lembrar dos meus pais a todo momento daquele jeito. Sempre hesitei.
Ela me entendeu:
- Sim, sim... - apertou mais uma vez minha mão, mas não a soltou. - Houve um momento em minha vida que tudo não fazia mais sentido algum. Meu marido, Aris, e meu filho, Rhony, eram como pessoas comuns, sem relação alguma comigo. Meu casamento não estava tão sólido como sonhei, tampouco minha vida, que desmoronava todas as manhãs quando eu levantava e me via sem ninguém. A tristeza me consumia e compilava meus sentimentos depressivos ma minha mente. Até que conheci alguém. Um homem que me fez voltar a ser uma pessoa felicitada e não angustiada. Vivemos juntos por tempo suficiente para eu me apaixonar. Então Aris soube de minha traição e eu fugi de casa. Rhony também não aceitou, mas não aceitava o fato do pai enlouquecer a minha procura. Então Rhony continuava a me visitar em uma moradia a norte de Nerbrade, uma pequena cidade interligada a signatura de Aquário. Ele sabia que Aris já me odiava e tentava convencer o pai de não me procurar, porém meses depois quando o meu amado cavalheiro me abandonou eu fui pega por um grupo de bandidos mal encarados. Neste dia Rhony estava comigo. O levaram também. Eles nos fizeram passar dias trancafiados até resolvermos trabalhar para eles. Nos convenceram disso e, de certa forma, aceitamos tudo aquilo como parte de nossa nova vida. Trabalhamos para Pandorius e perpetuamos o mal pelas signaturas.
Eu a olhava e era impossível enxergar maldade nos olhos de Bertra. Simplesmente não encontrava qualquer brilho negro em suas pupilas.
- E assim Pandorius ergueu seu império. - continuou ela. - Tomando guerreiros e aliados para seu lado às escondidas. Mostrou que possuía um exército. Durante anos servi a ele, todos o chamando de Mestre Das Sombras, nome esse que não negava e que o dava verto ar de superioridade, sublime, soberano. Minha tristeza maior, além de pensar que fui abandonada pelo homem que mais amei, questionando-me se casei com Aris por interesse, foi o fato de ter meu filho comigo seguindo aquelas ordens do grande Mestre das Sombras.
- Então meu pai serviu a Pandorius? - perguntei, tentando convencer-me de que tinha ouvido certo.
- Exatamente. - respondeu ela, passando mais uma vez a mão no meu rosto. - Rhony obedecia as chantagens de Pandorius e acreditava ser do mal assim como o seu mestre. Porém tudo diminuiu e o amor reinou novamente em seu peito quando conheceu Dayse Eaden. Ela tinha acabado de entrar para o exército de Pandorius, trazida da signatura de Capricórnio. Sempre foi recatada e altruísta, mas o amor os fez deixarem as diferenças de lado e viverem o melhor. Soube no mesmo dia que Aris morreu que Dayse estava grávida. Então tudo virou um misto de confusão. O próprio seguidor de Pandorius o matou, sem saber que era meu antigo marido. Não sei a razão. Então, Zagkri, eu e o seu pai pensamos bem em Dayse e o filho que viria. Aquela criança não poderia nascer e vivenciar o mal desde os braços da mãe até ganhar força suficiente para ser peça de controle do Mestre das Sombras. Então depois da Guerra dos Doze, Pandorius caiu. Seu reinado ruiu pedra a pedra, consumindo à fogo seus aliados e à luz seus desertores. Durante toda a guerra ele achou que todo o seu exército o serviria com mérito e honra, mas não eu nem o meu filho. Inclusive Dayse, e ela foi a razão mais importante para que desertássemos e seguíssemos outro caminho, longe da imagem derrotada de Pandorius. - ela sorriu para mim e me beijou a mão. Seus olhos eram idênticos aos do meu pai. Ela prosseguiu, respirando fundo: - Nós três então fomos morar em outra signatura, a dos Arianos. Sua mãe comia amoras verdes e bebia o suco vermelho da árvore rústica na gestação. Quando chegou o dia em que ela sentiu fortes dores, tivemos que pôr em prática o que Rhony e eu havíamos combinado. Então você veio ao mundo, Zagkri.
Num instante a porta da casa de Bertra abriu-se e uma garota de cabelos longos e negros adentrou no ambiente. Acima de seus fios escuros havia pequenos flocos de neve derretendo:
- Lá fora está impossível de se locomover... - disse ela, balançando o gorro e o casaco esfarrapado de neve. Quando me avistou, fechou levemente a porta e continuou a me encarar, como se esperasse que Bertra falasse alguma coisa. A garota tinha os cabelos tão negros quanto os meus.
- Zagkri, sua mãe o teve naquele dia. Seu pai e eu havíamos combinado que você viria comigo, iria ficar mais seguro longe dali. - então levantou-se e sem a ajuda da bengala foi em direção a garota. - Mas os deuses provaram sua confiança em nós. E nasceram duas crianças. Uma veio comigo e a outra foi criada por seus pais.
Eu encarei a garota.
- Esta é Kerb, minha neta. Sua irmã.

Capricorniano, a lenda da sombraOnde histórias criam vida. Descubra agora