Mensagem Inesperada

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ALERA. O que ela havia feito? Agora eu a via sendo levada por um homem alto, quase corcunda, com cabelos tão grandes quanto o de uma velha senhora contadora de histórias.
Almos levantou-se e encarou-a com os olhos saltados. Uma leve gota de sangue pintada no lábio inferior. Se apoiou na mesa e observou enquanto o homem corcunda levava Alera para fora da sala.
O homem corcunda tinha entrado imediatamente após o grito reverberante de Almos. Lembrava bem como ele chamava:
- Pólipus! Pólipus! - sua voz se estendeu pelo ambiente, enchendo-o por completo como a água que enche uma jarra. - Leve essa senhorita para a detenção! Agora!
Meus olhos ficaram fixos em Alera saindo bufando da sala, se recusando a ter as mãos trêmulas de Pólipus a tocando. Em seguida encarei Almos que escondeu um sarcástico sorriso e limpou com um lenço que tirou do bolso o sangue do lábio.
Senti novamente as mãos de Ejes me tocar nos ombros:
- Encare essa aula com bons olhos, Zagkri. Encare Almos com relutância, mas não cometa o mesmo erro de Alera. É exatamente o que ele quer. E sei que você não será tão estúpido de tomar certa atitude! - Ejes mantinha a voz sussurrada, meticulosamente fitando o professor de Taurinia regressar para trás do púlpito.

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Suportei Almos por quase uma hora. O falatório cheio de teorias sobre a história da Taurinia do século passado comparada aos desígnios da era contemporânea, as explicações sucintas dos heróis que transformaram a signatura numa exímia classe econômica e os praticantes de quiromancia que viviam em vilarejos ruídos se tornaram recorrentes durante a extensa aula.
Almos mandou que abríssemos o livro na página trinta e sete e nos ordenou uma tarefa:
- Todos terão que pesquisar sobre os praticantes de quiromancia mais famosos do século passado. Suas origens e seus feitos, destacando sobretudo a participação deles na Taurinia.
Quando Almos desceu os dois degraus que o levavam para a frente da classe, aproveitou para se dirigir a mim. Senti o temor de Ejes com isso. Vi que ele iria novamente encostar no meu ombro e me alertar para que eu não me precipitasse, mas desistiu e recuou quando Almos chegou à minha frente:
- E você, capricorniano, terá um trabalho a mais: Trará, além dos quiromantes, um relatório completo dos refugiados de guerra Taurinos também do século passado. Vamos ver se assim você aprende a ficar de boca fechada e evitar infestação da classe. - ele tinha se inclinado para falar bem perto de mim, então retornou à sua postura fielmente pomposa. - Sei que sua colega pagou o preço por tomar suas dores e de certa forma foi ridiculamente compreensível. Capricornianos não costumam pensar antes de agir. São conhecidos naturalmente pela violência impensável e pelas formas impulsivas que resolvem tudo. Espero que a partir de agora tenha-se um pouco mais de respeito quando se dirigir a mim.
Ele se retirou da sala com os passos firmes e eu ouvi a porta da sala bater atrás de si com truculência. Ejes não falara nada. Ouvi seu suspiro medonho e ligeiro. Ele estava atordoado.

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- Onde pensa que vai? - perguntou Ejes, me puxando a manga da veste.
- Me informar sobre Alera. Ela não pode se envolver nisso quando Almos me fez como alvo em princípio. - então me recordo de que estou novamente tentando salvar a pele de Alera. Lembrava bem de como a libertei do marinheiro bêbado no beco e de como fui perseguido quando ela resolveu me entregar. E agora parecia que eu não tivera aprendido coisa alguma com isso.
- Você ficou maluco? - Ejes levantou-se e me encarou, impedindo que eu desse mais um passo em direção à porta. - Se Almos o encontra lá fora é capaz de levá-lo para o mesmo lugar que levou Alera!
- É exatamente o que eu quero. Saber onde ela está. - Tentei passar por ele, mas Ejes pôs a mão sobre meu peito, me impedindo.
- De jeito nenhum vocês dois irão ser pegos e eu serei o único a representar a nossa signatura nesse lugar! - sua voz se sobressaía a minha e de certa forma entendi o raciocínio dele em me impedir. Almos realmente seria audacioso o suficiente para me prejudicar ao pensar que eu poderia ir em busca de uma pessoa da minha signatura.
A porta se abriu novamente e uma mulher com corpo arredondado, mais baixa que eu e com um sorriso resplandecente no rosto passou pelas fileiras cumprimentando um a um com acenos divertidos das mãos. O mais incrível era que ela tinha um penteado em vários coques e fitas em vermelho passeavam pelos fios. Joaninhas entravam e saíam de sua cabeleira e meia dúzia de borboletas sobrevoavam o topo da cabeça, dando-a um ar cômico. Alguns dos alunos riam e de certo modo minha raiva foi se diluindo pouco a pouco com a sua chegada.
Ela deu passinhos vagarosos e charmosos em direção ao púlpito de pedra. Ela o olhou, analisando a rocha rústica com delicadeza. Em seguida falou baixinho, mas pude ouvir atentamente:
- Sempre essa coisa horrorosa todos os anos. - então ela olhou para cima e esticou as mãos com unhas grandes pintadas em amarelo-ouro. E, de repente, as borboletas coloridas saíram do topo de sua cabeça e pousaram cada uma em seus dedos minúsculos. Ela deu uma risadinha frouxa e encostou a mão no púlpito de pedra. As borboletas bateram asas e giraram ao redor da rocha, trincando o material. Todos da sala estavam parados, admirando a beleza com que os insetos giravam pela rocha. Um coro de vozes suspirantes encheu o ar quando por algum motivo as borboletas começaram a se dividir em duas, quatro, seis... e então um pequeno tornado escondeu a rocha por alguns segundos e quando os insetos terminaram o trabalho todos riram e aplaudiram junto com a professora estonteante. O púlpito de rocha tinha se transformado num material colorido com as cores das unhas e vestes da professora. Que eram as mesmas de três alunos sentados no final da sala, na última fileira.
- Bem melhor! Bem melhor! Obrigado, meninas. - ela falava com as borboletas, meia dúzia delas retornando para sua cabeça e as outras vinte se espalhando pela sala até desaparecerem de alguma forma. - Ah, bem... bom-dia! Desculpem pelo atraso, não pude me organizar a tempo. Sou Margie Bonnevar, e ensino Libriania. Teremos muito o que aprender durante nosso período juntos! Espero que gostem e que não me façam comer mais doces de caramelo quando estou com estresse... - ela lambeu os lábios e revirou os olhos, como se doces acabassem de se projetar a sua frente. Todos riram.
Eu sufoquei um riso por pensar novamente em Alera. Algo me dizia que ela estava sozinha e precisando de ajuda, mas nunca arrependida do que fez. Se eu bem a conhecia depois do tempo de convivência, ela não estaria nem um pouco arrependida.

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A aula de Libriania de Margie tinha sido a melhor do dia em comparação a de Almos. Juntamente com Paskoale, um garoto magro de óculos quadrados que eu lembrava bem na cerimônia de chamada, ela explicou sobre as artes dos pintores librianos das últimas décadas e ressaltou Alma Eneva, uma pintora que amava borboletas assim como ela, e Benevio Supastre, um pintor libriano que morreu aos 123 anos enquanto pintava o seu quadro número 340, com insetos montando uma casa em uma floresta. Margie saiu do recinto da aula dando-me um sorriso e lançando as seis borboletas de sua cabeça na classe.
Abaixei os olhos para o livro e li um rápido trecho sobre os librianos:
"Apesar de terem vivido uma época de terror depois da guerra, os Librianos se orgulham de viver da arte e da beleza de movimento. São cidadãos que prezam pela sensatez de um sorriso, pela coragem de um brilho no olhar e pelo conforto de um amor incondicional."
Eu sorri. Senti uma leve cócega na mão direita, quando me deparei com uma das borboletas da professora Margie quietinha sobre minha pele. Ela sobrevoou em seguida o recinto e partiu junto com as outras. Meu olhar seguiu os movimentos de suas asas suavizando no ar.
- Sente remorso pelos seus pais, Zagkri? - senti novamente a mão de Ejes me tocar o ombro.
Eu iria responder de imediato se não conhecesse Ejes. Sua voz tinha sucumbido a um timbre grave, e senti como se uma sombra chegasse aos meus ouvidos e me paralisasse. Tornei a engolir em seco e permanecer com o meu olhar à frente. Não era Ejes. Ele deu dois passos até me encarar:
- Os senti gritar Zagkri. Os ouvi chorar. Os ouvi implorar por misericórdia. Que eu deixasse o seu pobre filhinho viver, enquanto eles davam suas vidas por você. Seus suspiros de agonia... sim, Zagkri... eles sofreram... Você sente isso? Nunca sentirá! Sempre terá consigo essa dor... a dor... morte...
A voz sussurrava no tempo, no ar, atravessando meu ouvido como se uma adaga atravessasse minha garganta. Olhei ao redor e todos na sala estavam estáticos. Alguns que conversavam simplesmente pararam em meio a uma risada. Outros que brincavam com bolinhas de papel estancaram e elas flutuavam, congeladas no ar. Tudo estava pálido. Tinha perdido a cor. Tinha perdido a alegria. Tinha perdido vida. Agora tudo cheirava ao pútrido caminhar da morte. Passada a passada, num movimento que recria o arrastar de sofrimento de alguém que clama por perdão antes de morrer. Ejes me encarava com olhos tão negros quanto o nosso traje de signatura. Apesar de sermos as duas únicas figuras vivas na sala, senti que Ejes estava sufocando enquanto algo usava seu corpo para me contatar. Para falar comigo. A criatura dentro de Ejes retornou o discurso medonho:
- Então eu os tirei a vida e os dei a morte em dor. Respeitei o desejo deles de mantê-lo vivo... pensei que com isso eu me manteria nesse mundo com duas vidas eternas. Mas não foi o suficiente... eu os matei... Você não sente remorso, Zagkri? Não sente? Seus pais... seus amáveis pais que eu tirei de você... Não quer vingá-los? Me encontre! Tenha sua vingança! Vamos! Venha... venha... venha, garoto... morte...
Eu havia me erguido da carteira e em um momento rápido ouvi o grito de Ejes atingir toda a sala em rodopios. Meu estômago apertou e eu me senti tontear. As vozes voltaram e as risadas, mas tudo foi cortado pelo grito apavorante de Ejes que tombou para o lado e em seguida por cima de mim. Eu o segurei e pedi ajuda. Um garoto sagitariano me ajudou a levá-lo para fora da classe. Eu iria perder a terceira aula para ajudar um amigo. Era justo. Enquanto isso duas perguntas me surgiam: primeiro, se Ejes retornaria a seu estado normal, e por fim, quem era a sombra dentro dele que falava dos meus pais.
Uma coisa de cada vez eu iria descobrir.

Capricorniano, a lenda da sombraOnde histórias criam vida. Descubra agora