6 - NÃO VEJO, MAS ENXERGO

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Começa mais uma sexta-feira de aulas, passo na casa do James e pego ele como fiz nos últimos dias e seguimos para a escola. Chegando lá, deixo ele na porta da sua sala (apesar dele já saber andar sozinho pela escola) e vou para a minha "fantástica" aula de matemática.

No intervalo entre as aulas de inglês e química, eu passo no meu armário para pegar os livros que vou precisar usar e nesse momento, vejo o Kevin vindo em minha direção com o seu sorriso zombador de sempre. Ele joga futebol no time da escola, alto, forte, nem um pouco agradável e muito menos bonito. Ele sempre arruma um jeitinho de me envergonhar na frente dos outros com a suas piadas sem graça e muitas vezes sem sentido. Por que ele faz isso comigo? Não sei.

— E aí boneca — diz ele ao se aproximar de mim.

Fecho o armário rapidamente e tento ir para sala, mas ele entra na frente.

— Deixa eu te ajudar boneca — ele diz, puxando um dos meus livros.

— Não precisa — digo tentando pegar de volta o livro da sua mão, mas ele é mais alto do que eu.

— Aí o que foi? Por que o viadinho não consegue pegar o livrinho dele? — ele zomba glorioso.

Ninguém faz nada, todos agem normalmente, já que acham essa situação normal. Os amigos do Kevin ficam observando e dando risadas da sua "brincadeirinha".

— Me devolve Kevin! — digo irritado, tentando pegar o livro da sua mão mais uma vez e mais uma vez não tenho sucesso.

— Devolve o livro dele agora — James aparece atrás de mim, com a voz firme e autoritária.

— Olha só, o cegueta vai fazer o que se eu não devolver o livro pro namoradinho? — ele desafia o James.

E a situação que até pouco tempo era "normal" se torna atípica e todos que passam pelo corredor param para olhar.

— Eu vou ter que pegar a força — James responde com o mesmo ar de desafio do Kevin.

Kevin começa a rir muito como se tivesse ouvido uma piada, mas dura pouco, ele para de repente.

— Vem então — ele desafia o James mais uma vez, agora com mais acidez na voz.

Eu não posso aceitar que o Kevin bata no James, ainda mais por minha causa.

— Deixa ele em paz Kevin, o seu problema é comigo — digo, entrando na frente do James.

— Você tá errado bambi, agora isso é entre mim e o seu namoradinho cegueta — ele diz com ódio escorrendo pela voz, e me empurra contra os armários com muita força.

James não perde tempo, ele acerta os testículos do Kevin com a sua bengala. Kevin se encolhe com a dor, é quando o James o chuta com força e ele cai no chão. James sobe em cima do Kevin de forma que ele não possa mover os braços. James dá um soco no olho direito do Kevin.

— Esse foi por tudo que você já deve ter feito ao Joe — mais um soco, agora no olho esquerdo. — Isso é pelo que você fez agora — estão um soco no nariz. — E esse é pelo que você nunca vai ter a oportunidade de fazer.

— Vamos para por aqui com esse showzinho de mau gosto. Todos vocês para minha sala agora — a diretora Cullen dá fim a essa situação.



— Como foi lá dentro? — pergunto ao James, assim que ele sai da sala da diretora Cullen.

— Eu expliquei pra ela, mas não adiantou muito — ele se agarra no meu braço e começamos a andar.

— Estou de castigo na cantina por duas semanas, além de ter que fazer um trabalho sobre como a violência não é a melhor resposta a agressões verbais.

— Me desculpe.

— Você não tem que se desculpar, ele estava errado e eu quis te defender.

— E como você fez aquilo? — tento descontrair, lembrando da precisão com que ele acertou aqueles golpes.

— Um cego não pode lutar karatê?

— Você luta karatê? — pergunto impressionado.

— Não — nós dois rimos — Mas depois de hoje quem sabe.

— Sei que, o que você fez não foi certo, mas de qualquer forma você me defendeu e eu queria lhe recompensar por isso de alguma forma.

— Que tal a gente ir pra minha casa e você terminar de ler o livro de Tristão e Isolda, já estamos dispensados mesmo.

— ok.



— [...] Um mundo de magia ainda visível em forma de neblina... O único lugar onde o menestral e a rainha podiam ser livres. — termino de ler o livro.

— Nossa, essa história é mesmo muito bonita — James comenta.

— Principalmente essa edição. Qual foi a sua parte favorita? — pergunto.

— É difícil, mas eu acho que é a primeira noite de amor entre eles. Apesar deles estarem sobre o efeito daquele líquido, sinto que eles já queriam um ao outro, e o líquido só deu um empurrão. Mas e você, qual a sua parte favorita?

— Posso parecer uma pessoa horrível, mas a minha parte favorita é a morte dos dois. É triste porque é a morte, mas é lindo porque foi o único momento em que eles poderiam ser felizes e livres ao mesmo tempo, sem se preocupar com mais nada nem ninguém, em um mundo mágico a qual os dois se encantavam enquanto vivos.

— Eu gostei muito de você ter lido para mim, vamos ter que fazer isso outras vezes.

— Com certeza.

— Eu fiz uma coisa pra você, mas não sei se ficou bom. É melhor deixa pra lá.

— Não senhor, você atiçou a minha curiosidade, agora quero saber o que é — fico curioso.

— Mas você tem que me perdoar se estiver ruim, não deu para eu ver como fico — ele diz enquanto levanta e vai até a sua escrivaninha, ele pega um papel e me entrega.

Não sei o que pensar ou o que sentir, ao ver o papel duas lágrimas simplesmente escorrem dos meus olhos. Ele desenhou o meu rosto, mesmo sem ter o visto depois de todos esses anos. Cada detalhe que ele percebeu, cada traço, a sua sensibilidade é admirável.

— Está muito ruim não é? — ele deduz por conta do meu silêncio.

— De jeito nenhum — eu lhe abraço com vontade, descarregando toda a saudade que senti durante todos esses anos que ele esteve fora. Abraça-lo é a melhor sensação que já senti em todo esse tempo. — Obrigado por você ter voltado — as palavras simplesmente escapam da minha boca.

— Então você gostou mesmo? — ele se certifica.

— É claro que sim — respondo tirando meus braços do seu pescoço, sentindo um pouco de vergonha por ter lhe abraçado de maneira intensa. — Tem certeza de que você é mesmo cego? Porque ficou muito bom.

— Eu não posso ver, mas consigo enxergar — ele diz passando o seu dedão delicadamente perto do meu olho direito, secando a lágrima, então eu consigo entender o que ele quis dizer.

Meu coração salta forte e rápido novamente, sinto uma agonia estranha correr pelo meu corpo, algo que nunca havia sentido antes.

— Então o que vamos fazer hoje à noite? Somos dois garotos de dezessete anos em uma sexta-feira, temos que fazer alguma coisa.

— Não sei, faz tanto tempo que eu não faço nada — admito, me sentando na cama.

— Podemos fazer uma noite de desafio — ele propõe.

— E como seria isso? — pergunto.



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