Capítulo 1

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       "Há vários motivos para não amar uma pessoa, e um só para amá-la; este prevalece" 

  Minha mãe acha que eu demoro para abrir os olhos de manhã, por que eu quero dormir mais. Mas não é por isso. É porque eu tenho medo. "Medo de ter um assassino ao lado da sua cama?", perguntou um dia minha amiga Ariella, quando, pela primeira vez, eu quis contar o que estava acontecendo para alguém. Desisti depois dessa pergunta. Eu não tinha medo de escuro, não tinha medo de altura e muito menos de acordar com um assassino ao lado da minha cama. Eu tinha medo de ver a minha escrivaninha, minha TV, minha mochila, meu armário, meu quarto. Eu tinha medo de ver a minha vida.

  E como sempre eu fiquei um tempo com os olhos fechados, como que rezando, para que quando eu abrisse os olhos eu visse aqueles olhos cinzas, a última luz que eu havia visto antes de tudo escurecer e sumir. Então eu abri os olhos. E lá estava o meu armário. Suspirei, um suspiro longo, cansado e triste. Me levantei. Fui escovar os dentes.

  Ultimamente os sonhos estavam diferentes, um diferente ótimo, mas diferentes. Eles estavam mais reais, como se eles fossem a minha vida real e a minha vida real um sonho. Quem dera fosse assim. Terminei de escovar os dentes. Fiz a minha maquiagem, muito rímel, como sempre. Fui conferir a minha mochila. Meus sonhos eram a melhor coisa dentre tudo na minha vida. É só eu e ele. Só eu, Clarisse Engely e alguém que não existe.

  Peguei meu celular, coloquei os fones e comecei a ouvir  "The Scientist" do ColdPlay. Tinha viciado nessa música, a letra dela me lembrava ele. E fui separar a minha roupa. Peguei um vestido branco que ia até os joelhos e que era um pouco justo do busto até a cintura, com a saia esvoaçante. Eu havia dito que não iria usar mais aquele vestido, mas era a única coisa branca que eu tinha no guarda-roupa, e eu queria variar um pouco, pelo menos por um dia, não usar preto. Coloquei um cinto grande azul, um All Star também azul, peguei a minha mochila preta e sai do quarto. 

 - Bom dia querida - disse o meu pai quando entrei na cozinha. Meu pai era um homem alto e forte, tinha cabelos castanho escuro e olhos verdes. Sempre reclamei por não ter herdado aqueles olhos.

 - Bom dia - respondi sem vontade, tirando os fones. 

 - Dormiu bem meu amor? - perguntou minha mãe, entrando na cozinha com um sorriso. Ela era uma mulher alta e magra e tinha cabelos negros curtos. Estava usando um vestido longo marrom e meu pai um terno cinza. Os dois iam à uma reunião na empresa da família. 

 - Ahan - respondi, a resposta seguida por um longo suspiro.

  Minha mãe e meu pai se entreolharam, e então olharam para mim, e começaram a me analisar. Odiava quando eles faziam isso, me sentia como um dos projetos deles. Eu era uma pessoa, era tão difícil me tratar como tal?

 - Pensei que havia dito que não queria mais usar esse vestido... - disse o meu pai com uma cara preocupada, quando me levantei e me direcionei para a porta da frente. Tinha perdido a fome no meio daquela análise. Parei na frente da porta, abri ela, me virei, e respondi:

 - Nem todo mundo segue um padrão papai, algumas mudam de ideia.

  E sai.

                                                                                                    ⚜️

  Sabia que havia sido grossa e que provavelmente meu pai não havia entendido a resposta. Vou explicar: minha família por parte de pai é muito rica, tem uma empresa arquitetônica muito conhecida no país. Eu, por ter sido criada em "berço de ouro" como todos dizem, era para ser uma garota delicada, bonitinha, mimada, e todas as outras coisas que se espera que uma garota de uma família como a minha seja. Decepcionei todos. Quando era pequena, todos diziam que eu devia ser uma garota inspiração, mas eu sentia que não era daquele jeito. Algo aconteceu é óbvio. Uma morte, envolvendo eu e, é claro, o vestido.

  Não havia sido minha culpa, todos sabiam, mas como em todas as cidades pequenas, tem que ter um culpado. Me lembro pouco daquela noite. Era uma festa de aniversário, daquelas bem extravagantes, eu tinha quatorze anos, era a melhor amiga da aniversariante, quero dizer dos aniversariantes. Era aniversário de 15 anos de Mariana e do irmão dela, Daniel. Ele era o meu namorado. Estava com uma jeans azul escuro, camiseta verde e All Star preto. O seu cabelo (como sempre) estava bagunçado, e aquele sorriso...nunca iria me esquecer daquele sorriso, e de como ele sumiu tão rapidamente.

  Eu como já devem ter presumido, estava com o vestido branco, mas com uma sapatilha e um cinto verde, e com meu cabelo (grande, brilhoso e volumoso naquela época) preso em um coque. Não lembro bem o que aconteceu após nós conversarmos na porta da sala de festas. Só lembro de estar em algum lugar escuro, ajoelhada em cima de um corpo, com algo na mão. 

  Agora eu já sei que aquele corpo era de Daniel. E o que estava na minha mão? Uma faca, pelo que me disseram. Nos encontraram na garagem, uns dez minutos depois da festa ter acabado. Ele já estava morto, não poderam fazer nada. Eu estava desmaiada ao lado dele. Naquele dia eu disse, não iria mais fingir que era aquela garotinha bonitinha, iria ser eu. E não iria mais usar aquele vestido.

  Muita coisa mudou.

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Por favorzinho se tiver qualquer erro ortográfico, avisem!

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