8 - Compadecido

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Eu havia presenciado um abominável ato de incesto.

Embora amasse Katie, eu não seria capaz de digerir uma prática tão hedionda. Mas ela era irrefutável e se pôs a falar antes mesmo que eu pudesse impedi-la:

- Isso sempre acontece - falou olhando para baixo deixando o choro correr livremente e confirmando minha teoria de que aquela não teria sido uma eventualidade - Ele sempre faz isso comigo, desde criança, mas dessa vez foi diferente. Ele nunca havia sido tão violento e eu, inocente, às vezes até gostava de suas carícias noturnas. Ele é mais forte que eu e ameaça me matar se eu não fizer todas as suas vontades, mas também é meu irmão e a única pessoa com quem tenho convívio constante além dos meus pais.

Ela continuou sua defesa numa retórica impecável:

- Ele sabe sobre nós. Ele nos viu no rio ontem. Ficou doente de ódio, me chamou de prostituta, meretriz, me bateu. Disse que eu o pertencia e por isso deveria servir somente a ele e como castigo por nosso divertimento, eu seria punida. Disse que contaria ao meu pai se eu gritasse ou tentasse impedi-lo de me usar como quisesse essa noite, então rasgou minhas vestimentas e... - Sua voz foi embargada por um choro desesperado.

Tive muito medo do choro dela acordar alguém, mas ela parecia ter certeza de que a porta trancada isolaria todo o som. Eu queria acreditar nela, mas não sabia como agir naquele momento. Ela segurou minhas mãos, beijou-as, passou-as pelos seus seios e disse que me amava. Que se arrependia de tudo e que poderia ser só minha se eu a perdoasse. Pediu para que eu não fosse embora, não a deixasse ali. Perguntei o porquê dela nunca ter dito a alguém ou fugido dali.

Ela me explicou que era ela quem seduzia os hospedes para gerar renda para a pensão. Eles viviam num lugar deserto, mas tinha uma cidade perto. Não tinham outra fonte de renda além da pensão. Seus pais precisavam dela para sobreviver, e além do mais, ela nunca tinha tido esperanças de uma vida diferente longe dali.

Ela me explicou cada detalhe do plano sujo da família. Disse-me que dopavam os hóspedes para que pudessem lhes roubar. Isso explicava o meu sono tão intenso da noite anterior. Pensei em conferir minha carteira, mas não quis fazê-lo frente a ela. Falou que nunca quis participar de nada disso, que repudiava as práticas da família, mas que embora não fossem perfeitos, que a explorassem de todas as formas possíveis, ela não tinha muitas opções visto que não tinha mais ninguém no mundo além deles até me conhecer.

Ela me olhava com uma cara tão deprimida que quando percebi, já estava completamente compadecido dela. Chamei-a para fugir comigo. Se saíssemos dali naquele exato momento, ao amanhecer já estaríamos distante o suficiente para ninguém nos alcançar. Ela soltou minhas mãos e se levantou. Disse que não podia fugir. Pelo menos não naquele momento.

Eu não podia entender. Se tudo o que acabara de em contar fosse verdade, como ela poderia ainda se recusar a fugir daquele averno*? Ela, com ar de confissão, me olhou com tristeza e tornou a explicar-me que sua família pertencia a uma linhagem de bruxas e naquela noite, a noite do perigeu lunar, ela teria finalmente seus poderes confirmados e poderia seguir seu caminho longe da família, mas se fosse embora antes do ritual se confirmar, ela certamente morreria queimada por algum grupo anti-bruxas.

Eu já tinha ouvido falar das Wiccas** e embora nunca tivesse dado importância por ser um homem cético, tinha bons motivos para querer ficar bem longe de qualquer coisa que pudesse referir a elas. Sabia que qualquer mulher que parecesse suspeita deveria ser lançada na fogueira, mas ela era diferente. Ela não parecia com as horripilantes mulheres descritas nas cartilhas e nas conversas de bar e a única ameaça que parecia me oferecer era deixar-me enfeitiçado por sua beleza. Eu tentava relutar, mas já havia perdoado qualquer culpa que ela pudesse carregar e qualquer possibilidade de perdê-la ou deixa-la novamente me parecia devastador.

Ela me informou que na próxima noite fariam um sacrifício à lua onde ela seria batizada com o sangue, e finalmente poderia escolher seu próprio destino. Prometeu-me que fugiríamos juntos, mas que eu precisava espera-la por somente mais essa vez.

Baixei a cabeça. Eu estava consternado, com medo, completamente tomado pelo remorso de adiar mais uma vez minha viagem. Não sabia ao certo com que tipo de gente eu estava lidando. Se eu a esperasse, fugiríamos na próxima noite e teríamos que ir para longe. Eu não poderia fazer minha pesquisa, não poderia encontrar meu amigo, não alcançaria meu tão sonhado mérito de Professor Honoris Causa. Por outro lado, teria ela, a única mulher por quem eu realmente me apaixonara em toda a minha vida. Uma mulher impressionante, linda, sensual e capaz de me dizer exatamente o que fazer para alcançar minha glória de outra forma.

Ela percebeu minha incerteza:

- Eu não posso te obrigar a ficar aqui, meu amado. Só tive por um momento a esperança de finalmente fugir desse inferno de vida que venho levando. Talvez seja mesmo muito egoísmo de minha parte e pedir para que acredite em mim seja muita petulância, já que nos conhecemos há tão pouco tempo, mas não poderia deixar de tentar agarrar minha única possibilidade de viver um amor.

Ela se aproximou e me beijou, mas eu não retribuí.

- Eu vou deixa-lo sozinho, meu senhor! Não devo mais incomodá-lo com minhas lamúrias - proferiu já saindo pela porta com um ar de decepção e com a formalidade que eu tanto detestava quando vinda dela.

Eu não consegui dormir mais aquela noite. Não conseguia parar de pensar em cada palavra que a rapariga me dissera. Aquilo era assustador, doentio e completamente indigesto.

Eu queria fugir dali naquele exato momento, seguir minha vida, esquecer Pittsburg, Cherokee, plantações de trigo ou qualquer coisa pudesse ter me trazido até ali. Queria esquecer que duas noites atrás eu tinha parado perante aquela pensão e resolvido pernoitar ali, naquele lugar tão ofensivo e oposto aos meus gostos refinados. Sentia saudade dos meus livros, dos meus lençóis de seda, do meu Brandy V.S.O.P.***.

Eu queria estar no meu minúsculo apartamento escuro e impecavelmente decorado com poucos móveis e espaço suficiente para um solteirão solitário colecionar seus clássicos de Nathaniel Hawthorne e Edgar Allan Poe, além das inúmeras enciclopédias e livros acadêmicos, que diferentemente de Katie, jamais me deixariam tão atordoado. Sentia falta das azucrinantes cartas de minha mãe aos domingos de manhã insistindo que eu me alimentasse melhor, largasse o álcool e arrumasse uma mulher parideira para dar continuidade à nossa linhagem. Eu sentia falta particularmente da faculdade, das tardes nos laboratórios, sendo aclamado por aqueles jovens de alta classe e nível social, ansiando por meus ensinamentos. Mas algo me prendia ali. Algo não me deixava partir sem que Katie Bender fosse comigo. Katie já havia me enfeitiçado completamente.

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*averno - inferno, lugar ruim;

**Wiccas - bruxas da idade media

***Brandy V.S.O.P. - bebida alcoólica obtida através da destilação do vinho



Katie BenderOnde histórias criam vida. Descubra agora