10 - O livro das sombras

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Eu tinha certeza que estava morto. Percebi que, na verdade, começara a morrer no exato momento que coloquei os pés na casa dos Benders. Reconheci que aquele estranho cheiro acre que infetava toda a estalagem era tão somente o cheiro do definhar das outras vitimas que os Benders já haviam feito. Mas agora, aquele fedor era bem mais forte. Aquele fortum quente e húmido entranhava em minhas narinas e eu podia jurar que se tratava da minha própria decomposição.

Comecei a recobrar a visão, mas não fazia ideia de onde estava. Pensei estar no inferno, até porquê, se a crença de minha mãe estivesse certa, eu deveria pagar por todos os meus pecados em vida, mas me lembrei de que nas estórias dela o inferno deveria ser ardente e ter cheiro de enxofre, e não de carne apodrecida.

Eu estava num salão escuro, embora com a vista ainda embaçada, pude reconhecer ser o porão de uma casa. Percebi duas silhuetas que se aproximavam de mim. John e Junior Bender. Eu ainda não estava morto, afinal.

Minha cabeça doía e eu pude sentir sangue quente escorrendo da minha testa, onde levara a pancada certeira da Sra. Marli. Como aquela velha poderia ter braços tão fortes? Senti a ferida aberta latejar e cabeça girar.

- Então está finalmente acordando, doutorzinho? - Junior riu com desdém - Achou que seus conhecimentos teóricos e posição social lhe dariam vantagem? Tente comer a irmã dos outros novamente.

- Deixe o homem, Junior - Vociferou John Bender - Não quero que ele pense que vai morrer por causa dos seus caprichos. Ele será muito mais útil para nós do que poderíamos imaginar.

Uma terceira silhueta se aproximou. Reconheci ser Marli.

- Finalmente teremos um sacrifício vivo. O deus cornífero* ficará muito satisfeito. Tenho certeza que sim. - bradou com entusiasmo - Vamos. Levem-no logo para o holocausto. A lua cheia está se posicionando.

Os homens me arrastaram pela caverna e então pude ver dois ou três cadáveres esquartejados, jogados pelo alçapão. Algumas partes dos corpos postos em tábuas de carne e tigelas de cozinha, outros simplesmente jogados ao apodrecimento. Tinha também um esqueleto de criança. Eu supus que era um dos abortos de Katie. Só podia ser filho de suas relações com seu irmão.

Meu corpo estava completamente amarrado, mas mesmo que não estivesse eu seria incapaz de mover qualquer dedo. Enquanto me levavam para fora do porão, minhas pernas abriam caminho entra a lama de sangue podre e restos de órgãos humanos caídos pelo chão. Se eu fosse capaz, teria colocado para fora toda a comida de um ano inteiro, mas o vômito parecia estar preso na minha garganta, pois meu organismo não tinha forças para expelir nem mesmo um suspiro.

Levaram-me para a matinha no fund do quintal que ficava entre o riacho e a estalagem. Chegando ao cerne, já com a vista mais estabilizada, reconheci Katie no centro de uma estrela de cinco pontas desenhada no chão circulo desenhado no chão, e envolta dela, vários lotes de terra fofa onde deveriam ter enterrado outros corpos. Katie estava vestida com um lençol branco e trazia os cabelos completamente soltos e emaranhados pelo vento. Segurava nas mãos um livro de capa de couro com um bode grafado na frente e as palavras num tom prateado "Livro das Sombras". Meu corpo congelou. O ritual estava se iniciando.

Havia ali um altar feito de pedras e rodeado por madeira. Aquele lugar estava reservado para mim, mas ainda faltavam alguns preparativos para a consumação, então me amarraram numa estaca ali perto e se puseram a acender velas e posicioná-las junto a alguns objetos distribuídos nas cinco pontas da estrela.

Pude perceber que cada ponta correspondia a um elemento: Fogo, terra, água, ar e espírito, portanto, as chamas das velas, algumas pedras brancas e redondas, uma bacia de cobre com água, algumas penas de galinha e por último EU. EU seria o sacrifício da quinta ponta da estrela.

Aquilo tudo me aterrorizava e eu era incapaz de pensar numa solução. Eu estava completamente perdido e seria feito de oferenda para alguma entidade pagã em instantes. Enquanto isso, Katie dançava e balbuciava coisas como ter chegado o grande dia, se tornar uma covens**, e finalmente se tornar uma Wicca por completo. Ela sorria embriagada e vitoriosa como se nem mesmo tivesse me visto ali. Sua mãe a ajudava com o ritual satânico ao qual chamavam de O Bealtaine***.

Junior afiava um athame**** enquanto John ateava fogo na lenha disposta ao altar de sacrifício. À medida que as labaredas aumentavam, eu olhava para o céu e via lua se alinhando ao centro do circulo desenhado no chão. Mais alguns minutos e eu seria decepado e queimado feito um cordeiro para festas natalinas. Eu gritava por Katie com os olhos marejados, mas ela sequer virava a atenção para mim. Gritava por socorro, mas por algum motivo, nenhuma criatura viva parecia habitar Kansas naquela noite. O desespero já tomava conta de mim. O medo me trazia alucinações e náuseas. Eu me sentia completamente acuado. Já não era aquele animal selvagem que lambia o corpo de Katie com desejo voraz na tarde do dia anterior, mas um ratinho na mira de seu predador, pronto a ser dilacerado entre garras.

A lua finalmente se alinhara ao circulo mágico. Seus raios prateados iluminavam cada linha riscada no chão a ponto de parecerem fios de prata. Os olhos de Katie ficaram dilatados e arregalados e sua voz mudou completamente sendo sobreposta por uma voz grave e demoníaca.

- Finalmente o momento mais esperado! Finalmente o perigeu!! Que comece o Bealtaine!! - Ela ria pavorosamente.

Katie pegou o athame e desenhou uma linha em seu pulso, que logo se cobriu de vermelho deixando escorrer algumas gotas de seu sangue sobre a estrela desenhada no chão. Todo o circulo mudou de cor para um vermelho escuro, então Katie caminhou em minha direção apontando o punhal para mim. Aquele era o meu fim.

Chegando até mim, cortou todas as cordas que me envolviam deixando apenas as que me prendiam as mãos e os pés. Eu poderia tentar me desvencilhar delas, mas logo os dois homens me seguraram me deixando completamente vulnerável à bruxa. Ela então cortou minhas vestes deixando-me completamente nú e com a ponta da faca desenhou em meu ventre uma réplica da estrela pontuda.

- Vamos ver se o Sr. Julian Corbat é realmente tão viril quanto demonstra. - Disse aquela voz estridente - LEVEM-NO À FOGUEIRA!!

Meu desespero foi notório. Pela primeira vez em muitos anos me senti um ninguém. Eu já não era professor renomado, eu já não era o cara conquistador que costumava ser, eu já não era Julian Corbat, eu não era nada, e por ser tão nada, senti o medo esvair do meu corpo e a mente ficar branda e livre de qualquer senso racional.
Uma ideia um tanto tola me surgiu à cabeça. A probabilidade de dar certo era quase nula, mas não havia mais nada que pudesse ser feito. A mínima possibilidade de o meu plano falível dar certo era a ultima coisa à qual eu poderia me apegar.

Num solavanco, empurrei John e Junior Bender e lancei-me sobre a adaga de Katie usando a lamina para cerrar as cordas que prendiam minhas mãos. Por um triz a adaga não entrou no peito, mas passou de raspão pelos meus dois pulsos formando dois cortes grandes o suficiente para escorrer bastante sangue. Ela caiu para trás e caí sobre ela, rastejando em direção ao fogo. Eu não teria tempo de cortar as cordas dos pés, então me lancei na fornalha à fim de que o fogo as desfizesse.

O plano estava dando certo. Junior não teve coragem de me seguir até a fornalha, mas quase me alcançou quando saí de lá com os pés queimados correndo desesperado ignorando toda a dor dos meus ferimentos.

Fui em direção à floresta sentindo os tocos e pedras entrarem na minha carne viva. Eu perdia muito sangue e me sentia completamente tonto e enjoado. Estava perdendo as forças rápido demais. Ouvia barulhos atrás de mim me perseguindo, então de algum lugar que ainda não sei onde, retirava forças e continuava a correr. Parei pelo menos cinco vezes para me recostar sobre uma arvore qualquer e tentar recuperar o folego, mas voltava a correr quando sentia as folhas se moverem atrás de mim.

Eu não sei por quanto tempo corri, nem mesmo se consegui chegar longe o bastante para me livrar daquela família de doentes. Só sei que em determinado momento minhas forças se esvaíram por completo e eu já não pude ver mais nada. Pela segunda vez na mesma noite, senti a morte me beijar.

*Deus cornífero - entidade pagã

**Covens - Bruxa na fase madura.

***O Bealtaine - Ritual que marca uma passagem.

****Athame - Espécie de punhal utilizado para rituais





Katie BenderOnde histórias criam vida. Descubra agora