11 - De volta a Kalamazoo

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Uma vez me disseram que a dor é psicológica. Não sei se é verdade, mas quando se precisa correr de um maníaco endemoniado com os pés completamente queimados e os pulsos rasgados, o psicológico não ajuda muito. Eu sentia minhas pernas arderem e sabia a textura exata de cada toco de arvore e pedra que estavam pelo caminho, por menor que pudessem ser. Podia, inclusive senti-los cravar em minha carne e ficar ali mesmo, criando uma crosta de sujeira que provavelmente pra traria uma gravíssima inflamação depois.. isso se eu ainda tivesse vida depois disso tudo.

Eu já havia perdido muito sangue e estava a ponto de perder a consciência. Sentia as pernas bambas, muita vertigem e meu corpo todo parecia não me pertencer mais, mas eu não podia me render. Precisava retomar as rédias do meu corpo por pelo menos mais alguns instantes ou seria servido à pururuca num jantar a luz de velas para um deus bode chifrudo do espaço. Consegui correr por mais alguns minutos, segundos ou qualquer medida de tempo que para mim parecia uma eternidade, até finalmente chegar à estrada onde, embora não fosse muito movimentada, eu ainda poderia ter alguma mínima possibilidade de receber ajuda. Minhas forças se esvaíram por completo e antes mesmo de agradecê-lo por ter aguentado até ali, me deixar cair, completamente nu e machucado, num sono que talvez nem tivesse volta.

Por sorte eu pude acordar numa sala branca com janelas de vidro que aos poucos pude identificar como sendo de um hospital. Eu não fazia ideia de quanto tempo eu passara ali, mas meus pés estavam completamente enfaixados e meus punhos já possuíam uma marca vermelha de ferida cicatrizando sob os pontos recém tirados. Um viajante que estava à procura de seu irmão passava pela estrada no momento da minha fuga e me vendo caído inconsciente, tomou-me em sua carroça e levou-me até Cherokee onde fui medicado e empalhado em curativos.

Eu ainda estava bastante sedado, mas podia sentir minhas queimaduras por baixo das ataduras arderem como se tivessem acabado de ser lançadas ao fogo novamente. Em alguns momentos, urrava de dor, então uma enfermeira vinha ao meu encontro e me aplicava injeções que em faziam voltar a sonhar.

Em todos os sonhos, eu podia me ver no riacho fodendo Katie, mas quando olhava meu reflexo na água, já não era mais eu, mas Junior Bender com seu riso de soslaio. Quando voltava a vista para Katie, ela já segurava seu livro olhando para mim e gargalhando enquanto um corvo saia de sua boca e dizia "nunca mais", assim como no poema de Allan Poe, então eu acordava suado e ofegante, e a equipe médica constatava que eu estava enlouquecendo.

Passei cerca de três meses no hospital até que alguns amigos de Lawrence, cidade onde eu morava antes de todo esse inferno e lugar de onde eu jamais deveria ter saído, vieram me buscar. Eu já estava bem recuperado das feridas, mas continuava a ter os sonhos que cada vez se intensificava mais.

Me disseram que os Benders foram finalmente descobertos como assassinos e ladrões e havia boatos de que uma assuada* os perseguiu os matou a golpes de alabardas**. Contaram ainda que eram alemães e usavam nomes falsos. Me lembrei do estranho sotaque dos patriarcas, que embora fosse notório, eu não pude reconhecer a origem.

Cadáveres de muitas outras vitimas foram encontradas nas terras deles também, inclusive o corpo de Henry McKenzie, meu velho amigo de faculdade. Na verdade, algumas pessoas já haviam desconfiado daquela família de seriais killers, porém, não haviam provas e nem mesmo relatos de sobreviventes, então eu era mesmo um sortudo. Um fato subversivo e inédito, porém eu não duvidava de nada, afinal, tinha visto tudo com meus próprios olhos, embora fosse incapaz de acreditar que todos estivessem realmente mortos. Katie era esperta demais para se deixar morrer nas mãos de qualquer grupo de camponeses.

Com o passar dos meses, meus surtos foram se intensificando e como eu morava sozinho, meus amigos acharam arriscado me deixar em casa sem ninguém para me cuidar. Engraçado, eu que sempre fui independente, depois de velho, precisaria de uma babá. Eu tentei argumentar, mas confesso que nem eu estava mais convencido da minha sanidade, então decidiram me internar.

Katie BenderOnde histórias criam vida. Descubra agora