1 - Julian Corbat, o Don Juan de Kalamazoo.

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Você certamente me julgará louco. Mas o que há de mais louco nesse mundo que um homem deveras apaixonado? A paixão é sentimento capaz de desnortear qualquer viajante experiente. Altera os fatos, aliena, cega, desmonta e dilacera. De fato, a história que vou lhes contar parece uma falsídea, mas ouvi uma vez que se algo existe em sua cabeça não quer dizer que não exista de verdade. Portanto, peço apenas que não romantizem este relato. O amor, assim como no famoso romance de Liev Tolstói*, é capaz de produzir um vazio no coração, até mesmo daqueles que se julgam completos.Embora eu esteja abrindo meu coração à vossa senhoria, não espero condolências em retribuição.

Eu sou o professor Doutor Julian Corbat, Engenheiro agrônomo e pesquisador renomado da Universidade do Kansas, ou pelo menos costumava ser até cerca de um ano atrás. Não sou um arcaico, antes que pense ser isso tudo um devaneio causado pela idade avançada. Gozo ainda de plena meia idade e me mantenho bastante conservado por obter hábitos moderadamente saudáveis, apesar de pecar um pouco na alimentação, que em minha defesa, não tenho mais o luxo de optar como será servida. Ou aproveito o que me trazem ou morro à mingua sem o menor esmero dos diretores desse lugar. Além do mais, mesmo enclausurado nesse mausoléu de doentes, nunca descuidei da aparência, afinal, um Dom Juan que se preze nunca sai de forma. Jamais perdi a esperança de ser visitado por alguém que me desperte algum interesse.

Cheguei aqui, confesso, em estado realmente decadente. Eu parecia mesmo um doente. Mas você não pode me julgar. Não podia ser diferente, afinal, sofri uma tentativa de assassinato da forma mais brutal que se possa imaginar. Fui ludibriado e tentaram me entregar como holocausto num ritual de bruxaria. Não dá para manter a mente sã após quase fazer parte de um trabalho de magia negra. E o pior de tudo, a parte mais dolorosa para mim, a única mulher que eu pude amar de verdade em toda a minha vida teria sido a isca, a distração, a flor branca que atrairia minha atenção e me lançaria em tal armadilha. Eu estava confuso, com o coração partido, com medo, e mais ainda, perdidamente apaixonado.

Eu sou um homem solitário. Não tenho nenhum familiar além da minha mãe, uma senhora um tanto caquética que beira os noventa anos e que vez ou outra ainda me manda cartas insistindo que eu me encontre em algum par de meias e arrume um casamento, pare de beber e me alimente direito, o que evidentemente, não atenderei por falta de vontade, oportunidade e designo. Hoje eu me arrependo de não ter dado ouvidos à minha senhora matriarca. Talvez eu devesse ter me casado jovem como todo homem comum e levado uma vida medíocre, monógama e cinzenta, vendo meus sonhos morrerem rodeado de choro de criança e ouvindo uma mulher gorda e desleixada reclamar a ausência do filho mais velho, as notas horríveis de outro e a rebeldia da filha adolescente.

Meus colegas de trabalho, médicos e amigos de convívio decidiram me internar nesse manicômio a fim de que eu pudesse me tratar, totalmente contra minha vontade, que tenho lhes atestado estar em plenas faculdades mentais. Entretanto, não posso tira-los da razão. Eu via o rosto daquela mulher, aquela que me tirou dos eixos, em todos os lugares, todos os momentos, todos os espaços. Tinha sempre a sensação de estar sendo perseguido, vigiado, coagido. Tinha medo do fogo, dos cavalos, da minha xícara de café, dos meus livros e até mesmo da minha sombra. Qualquer coisa que pelo menos me remetesse a minha última viagem me parecia ameaçador.

Nos primeiros dias, os médicos me colocavam em camisas de força e me amarravam nas macas para que eu não fugisse. Tentavam me conter e reprimir a qualquer custo sem moderar no uso da força e da civilidade. Falta de compreensão da parte deles pois mais uma vez, repito, eu não estava louco, só precisava de um pouco de ar fresco, colocar a cabeça no lugar e encontra-la só mais uma vez para terminar o nosso assunto e compreender tudo o que tinha acontecido entre a gente. Eu precisava fugir daquele lugar. Os médicos chegaram a cogitar experimentos cirúrgicos relacionados à lobotomia e aquilo me apavorou. Sagaz que sou, percebi que se não me submetesse ao tratamento à base das drogas que me manipulavam, em pouco tempo seria um homem oco, sem vida ou sentimentos ou, se tivesse mais sorte, um cadáver decepado rodeado de estudantes presunçosos e inexperientes numa maca de universidade.

Optei por colaborar tomando os remédios que me davam. A cada hora, um coquetel de comprimidos coloridos era me apresentado, e eu, embora um pouco relutante, tomava todos acompanhados de um xarope azul que me traziam num copinho de plástico. Ainda posso me recordar do cheiro dócil da química que adormecia minha mente. Meus dias se resumiam em tomar os remédios, comer, adormecer à custa dos soníferos e pensar numa forma de fugir do inferno quando os efeitos começavam a passar e eu podia raciocinar. Mas então, chegava uma enfermeira maltratada com mais um banquete de sintéticos manipulados e xarope azul para me devolver ao meu coma mental.

Aos poucos fui me acostumando aos remédios. De pouco em pouco, conseguia esconder algum dos comprimidos embaixo da língua e cuspir depois que a enfermeira saía do quarto. Fui aprendendo a controlar melhor meus instintos e "me comportar" como um bom paciente na presença dos médicos, que satisfeitos com os resultados do tratamento, aos poucos vinham diminuindo a quantidade exorbitante dos meus comprimidos.

Vez ou outra ainda confundia alguma enfermeira com minha amada. Claro que não qualquer enfermeira, porque a maioria ali parecia suburbana e de baixa classe, totalmente oposta àquela que tomou meus olhos. De alguma forma, eu sabia que a veria novamente e eu não estava errado, afinal. Os remédios que eu ainda tomava me deixavam com a mente turva e às vezes e tornava mais difícil manter o "bom comportamento", mas eu já não gritava como antes, nem tentava mais fugir dali. Já me conformava com a situação decadente em que me instalei e decidi abraçar o diabo, uma vez que visitei o inferno. Mas quando via alguma mulher parecida com ela meu coração batia mais forte e a vontade de fugir dali voltava à tona. Eu passava os dias à espera do momento em que a veria entrar pela porta do meu quarto e me explicaria o porquê de ter me enganado e me abandonado daquela forma.

A medida que fui me tornando mais brando e sóbrio, passei a aproveitar os momentos acordado me dedicando a escrever cartas e poemas de amor para minha Estrela dos Sonhos. Belas rimas e doces palavras que eu queria ter dito a ela e que aos poucos me consolidaram com o apelido que as enfermeiras me deram: O Poeta de Kalamazoo**


"As paredes são brancas, querida,

Como tua pele jazida.

Tudo aqui é cinzento sem os teus olhos de mar;

Tudo me tira o sentido sem poder te tocar.

Aguardo tua volta sem ter hora

Como aguardo o retorno ao meu corpo.

Corpo que me prende e me afasta de ti.

Mas se não vieres logo, querida;

Irei ao seu encontro sem contraponto

Se és este corpo que me prende aqui

Que ele fique e eu vá.

Que eu more em contigo em tua vida.

Que eu viva contigo em teu lar"

Julian Corbat


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*Romance Anna Karenina de 1877;

**Kalamazoo - Um dos hospícios mais conhecidos dos Estados Unidos. 


Katie BenderOnde histórias criam vida. Descubra agora