Episódio 1

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Úgui já quase não conseguia correr. Seu corpo inteiro doía. Mas, não tinha alternativa. Se fosse alcançado, não escaparia. Seria linchado. Chefe deposto tinha de morrer. Era a lei da sobrevivência do bando.

O pior para o garoto era estar descalço e atravessar os monturos de escombros e lixo, repletos de cacos de vidro, pontas de metal e de madeira. As solas dos seus pés estavam em tiras, deixando um rastro de sangue. Cada passo, agora, era mais uma ferida aberta.

Náique e seu grupo haviam caído de surpresa em cima dele. Úgui não tivera tempo de pegar nem seu furador, nem a socadeira, nem os preciosos tênis que ele próprio havia reforçado. Já fora sorte escapar com vida.

"Como foi que não desconfiei que iam me pegar? O Náique! Claro, tinha que ser ele! Tava na cara! Cochichos! Olhares de lado! E eu, bobão! Estava quase dormindo quando vieram pra cima de mim! Bobalhão, eu! E bobalhão morre!"...

Não adiantava mais irritar-se consigo mesmo. Tinha é que aguentar os rasgões nos pés. E a dor das pancadas e dos golpes que sofrera. E a fraqueza, cada vez maior. Respirar doía! Tudo doía.

E tinha de correr. Esquecer que doía. Correr!

Por momentos, afundava até acima das canelas em fossas daquela lama descorada e gosmenta que recobria a paisagem. Parou, sem fôlego. O fedor azedo de lixo velho e a névoa ácida que embaçava o ar penetraram profundamente nos seus pulmões. Seu peito ardeu. Pensou na possibilidade de se esconder. Esperar de tocaia. Agarrar um dos garotos e tomar os tênis dele.

Mas, não ia dar certo...

Havia treinado seu bando muito bem. Dificilmente, algum deles ia ser idiota de se afastar dos outros, sozinho. Daí, bastava um grito de alerta e viriam todos. Úgui estaria perdido.

Tentou escolher onde pisava. Mais difícil ainda. A escuridão das ruas não o deixava ver quase nada. E ele já perdia terreno. De longe, chegavam os berros dos garotos, procurando seus rastros na massa de lixo.

Úgui precisava encontrar um esconderijo onde os garotos não iriam procurá-lo! ...

- Vocês têm de parar de ir no Roxy! Tem um vampiro morando nas ruínas.

- Um vampíro! – admiraram-se os garotos. A palavra lembrava alguma coisa: dava medo. – O que é um vampiro?

- É... uma sombra! – arriscara Úgui. – Se alguém chega perto, ele pega ... e transforma o cara em sombra também.

- Você está inventando, Úgui! Isso não existe! – desafiou Náique, cada vez mais atrevido.

- O pessoal de antigamente acreditava em vampiros, Faziam até filmes sobre eles, para todo mundo ter cuidado. Eles sabiam das coisas. Vi um cartaz lá na parede do Roxy e consegui ler... VAMPIRO! Vocês precisavam ver o retrato dele. Estava com fome! Muita fome! E vampiros não morrem. Nunca. Ele ainda está lá!

Úgui era um dos únicos garotos do bando que sabia soletrar. Havia aprendido com o chefe que o antecedera. Com ele, aprendera também histórias de como a cidade fora. E de como vivia o pessoal de antigamente. Algumas dessas histórias, ele sabia repetir. Outras, lembrava mais ou menos, meio misturadas, faltando pedaços.

Mas, nunca confessava quando não sabia . Ia inventando. Uma das habilidades de que um chefe de bando precisava era saber contar histórias. Principalmente sobre como fora a vida antes. Por isso, ele sempre arrumava um jeito de contar a história. De explicar, de dizer o que era o quê, de responder as dezenas de perguntas que o bando trazia, todas as noites para as reuniões em volta da fogueira, sobre o que tinham encontrado e descoberto em suas explorações.

A HORA DAS SOMBRASOnde histórias criam vida. Descubra agora