Episódio 7

10 0 0
                                    

                O mensageiro mordia os dedos de aflição. A tarde já avançava pela metade e nada de o encadernador de livros aparecer.

- O velho teve um enfarte. Eu o via ofegante, quando tinha de escalar um lixão. E essa lama, prendendo o pé... Cansa demais! Ou então, afundou numa fossa de lixo movediço. Mas só pode ter morrido. É a segunda vez que fura comigo!

Mediu outra vez a altura do sol, descendo, ao longe, por entre o Dois Irmãos e a Pedra da Gávea. Decidiu que ainda dava para esperar mais um pouco.

- Depois, dane-se! Eu é que não vou ficar solto aqui, de noite.

Levaria mais ou menos uma hora, a pé, até o estacionamento – o início da via expressa que desembocava na Zona Oeste, ladeada por muros e guarnecida por guaritas a cada cinquenta metros. Mais quinze minutos rodando, e chegaria ao Condomínio. Era funcionário do Condomínio Fortificado Atlântica Sereia. Cargo: Auxiliar de Serviços Externos. Ou Motoboy.

- Para o gerente é fácil dar ordens – resmungou. – "Restabeleça contato, ou ache outro fornecedor!". Outro fornecedor..? Fornecedores não anunciam na tevê, não é? Vivem entocados como ratos. E onde eu ia encontrar outro maluco que consertassem livros se desfazendo de velhos? Esse deve ser o último que sobrou na cidade. Não é à toa que nenhum outro motoboy conhece quem faça esse serviço. Senão, já tinham tomado meu cliente. Droga! Vou acabar perdendo o emprego por causa daquele velho doido. Era meu fornecedor mais raro. Minha melhor comissão. Ele não podia ter se ferrado, não podia! Se pelo menos, eu soubesse onde ele mora...

Já tentara seguir o encadernador de livros. Um motoboy despachado tratava de descobrir onde eram os esconderijos de seus fornecedores.

- Mas, aquele velho era esperto. Não chegou a me ver. Mas, nunca corria riscos. Ficava dando voltas até anoitecer. Daí, era fácil me despistar. Quase me ferrei, uma vez...

Sentiu um arrepio só de recordar. De repente, o velho enfiou-se numas ruínas e sumiu. O mensageiro chegou a pensar que havia encontrado a toca do seu fornecedor. Mas, desconfiou... O prédio estava em condições tão precárias que seria um perigo alguém morar ali. Resolveu entrar para checar. Sacou sua pistola e meteu-se pela mesma fenda por onde vira o velho passar.

O interior do edifício estava num estado ainda mais preocupante. As infiltrações e os cupins haviam reduzido as paredes a cascas ocas. O teto mostrava imponentes rachaduras, que pareciam se alargar, quando o motoboy passava debaixo delas. O piso tinha buracos semelhantes a bocarras, cujas goelas era a escuridão do que fora a garagem daquele prédio.

O motoboy somente avançou porque parecia um edifício enorme, que talvez ainda tivesse algum canto habitável, onde encontraria o lar do encadernador.

Mas, logo chegou à conclusão de que o velho o havia despistado. Só que, nessa altura, já havia escurecido e ele, lúgubre do prédio, não percebera como o sol decaíra rapidamente. Vindo lá de fora, então, o mensageiro começou a escutar rumores de algo se arrastando, sem se preocupar em evitar de denunciar sua aproximação. Escutou também um murmúrio crescente. Vozes. Numa toada de muitas gargantas roucas. Nada que pudesse decifrar. Não eram palavras. Eram uivos.

Sabia que era uma hora perigosa. A cidade era povoada, à noite. Os bandos saíam de seus esconderijos para catar comida – e brincar, em meio às ruínas. Brincar...

Se fosse capturado por um bando, o pegariam para brincar. E de brincadeira poderiam arrancar sua pele. Ou apedrejá-lo. Já soubera de motoboys que haviam morrido assim. Ou que haviam se tornado escravos de um bando, puxados por cordas amarradas a seus pescoços. Brincar.

A HORA DAS SOMBRASOnde histórias criam vida. Descubra agora