Episódio 6

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                O pai de Liana era encadernador de livros e restaurador de volumes antigos. A oficina, com cheiro de gesso e cola, e o quartinho atrás, com a cama e o pequeno fogareiro, eram o mundo que ele permitira a Liana conhecer.

A oficina não tinha janelas para a rua. Ficava nos fundos de um sobrado, que já era antigo na época em que a cidade ainda tinha vida. A fachada estava desabada, mas, a parte oculta das ruas era habitável.

Por vezes, o pai levava Liana por uma passagem lateral estreita e, indicando uma escada de degraus de cimento, que descia até um portão de ferro, sempre fechado, dizia, com lágrimas nos olhos:

- Foi por ali que sua mãe saiu, naquele dia. Ela nunca mais voltou. Nós três poderíamos ter vivido aqui para sempre, escondidos. Mas, ela não aguentou. Saiu por aquela porta. Nunca atravesse aquela porta, minha filha!

- Mas, você sai por ali e sempre volta! – replicava quase sempre Liana.

Na verdade, Liana estava perguntando ao pai se ele também, algum dia, sairia por aquela porta para nunca mais voltar. Ele compreendia e a abraçava, suplicando intimamente que pudesse protegê-la para sempre. Depois, ajeitava os óculos de lentes grossas, enquanto retornavam para os fundos do sobrado e sorria.

- Hoje tenho uma encomenda.

Acontecia com alguma frequência. Uma encomenda... Debruçava-se então sobre sua mesa de trabalho e passava as horas seguintes em silêncio, á luz das velas, manuseando algum livro, livrando as páginas de pragas, recompondo-as, montando a nova encadernação. Lidava com livros com imenso carinho. Liana sentia que era o mesmo amor, que ele lhe dava. Mas, não sentia ciúmes.

Só que nem sempre havia encomendas. Por um lado, Liana ficava feliz, porque o pai não precisaria sair para entregá-las. Por outro, era ruim. Cada livro restaurado valia um pacote de velas, álcool para o fogareiro, enlatados...

- Para quem você restaura os livros?

- Antigamente, minha oficina não era aqui. Vivia cheia de clientes.

- Mas, hoje...?

- Entrego para um mensageiro. Pego os livros com ele, trago para casa, trabalho... Depois entrego de volta a ele. Uma vez por semana, vou até o lugar do encontro e vejo se tem encomenda.

- E por que ele não entrega o livro a você aqui?

- Não quero que ele saiba onde a gente mora. Ninguém pode saber.

O pai falou aquilo com a voz assustada. Olhando fixamente Liana. E a menina ficou assustada, por causa do medo dele. Mas, havia mais uma coisa que queria saber.

- É ele quem lê os livros?

- Não... Acho que ninguém os lê. Ficam em estantes. De enfeite. Ou eles dão de presente uns para os outros. São poucos clientes, na verdade.

- Quem são eles?

O pai deu de ombros. Não sabia ao certo o que poderia responder.

Depois, segurou-a com força pelos braços e a fez jurar mais uma vez que nunca sairia à rua. Daí, foi trabalhar num livro tão pequeno que mal ocupava a palma da sua mão. Liana lembraria para sempre esse último momento de felicidade. Assistiu em silêncio seu pai virar as páginas com a ponta dos dedos, esquecido de tudo o mais que havia em volta.

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