Episódio 3

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Náique farejava o ar pestilento do interior do velho cinema, como se pudesse distinguir o cheiro de Úgui.

E talvez pudesse. Era um excelente caçador. Os garotos o admiravam muito por isso.

O grupo era o mesmo que havia emboscado o chefe deposto. Náique e mais quatro. Eram os únicos que tiveram coragem de entrar nas ruínas do que fora o cinema Roxy. O resto do bando, amedrontado com a história do vampiro, esperava lá fora, fazendo o cerco.

Úgui movia-se silenciosamente, ao longo da murada do balcão superior. Acompanhava as chamas das tochas que circulavam entre as fileiras de poltronas destroçadas da plateia. Náique estava exatamente embaixo dele.

"Um salto bem dado e quebro o pescoço do traidorzinho. Daí, ele não vai ter o gosto de ficar de chefe no meu lugar!"

Mas... e se apenas machucasse Náique levemente? E se levasse a pior na queda? E o que faria, quando os outros garotos viessem para cima dele?

No entanto, sabia que terminaria mesmo por arriscar alguma coisa desesperada. Náique tinha instintos. Adivinhava o que sua caça pretendia fazer.

Logo, pressentiu que Náique comandava os garotos para o balcão do segundo andar:

"O pivete desgraçado aprendeu tudo comigo!", rugiu Úgui por dentro, lembrando-se...

- Pra onde a gente vai quando os bichos-blindados pegam a gente?

Era Náique, ainda pequeno. Os olhos cheios de lágrimas, depois de ter assistido a uma cena cruel. Úgui sentira enorme embaraço, sem conseguir responder. De repente, teve uma ideia:

- Você lembra – disse, abraçando o menino ... – que eu contei que o pessoal de antigamente achava que a gente era levado para o céu...?

- Quando morre...? – murmurou Náique.

- É... – disse, hesitando, Úgui. – Daí, a gente vai ficar bem. Lá no céu! Diferente daqui!

- Mas, não podiam levar a gente... de um jeito bom?...

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- Vai ver... não é tão ruim assim. Náique, não se preocupe. Os bichos-blindados só pegam os garotos mais velhos. Você é pequeno ainda.

- Mas, e quando eu crescer?

- Daí, você vai ter aprendido a escapar dos bichos-blindados. Como eu.

Naique não pareceu satisfeito. Logo, disse, magoado:

- Você mentiu, não foi?

- Menti, o quê?

- Você tinha dito que quem levava a gente para o céu era anjo. Mas, o bicho-blindado jogou uma rede e pegou a Iéssi. A rede ficou presa, daí eu vi. Saindo do blindado. Os tiras. Arrastaram a rede para dentro dele, com a Iéssi. Tiras! Nada de anjos! Nem se importaram com os berros dela. E ela estava apavorada, chorando. Se debatendo. Implorando que soltassem ela. Machucaram ela. Bateram. Muito. Não eram anjos. Anjos não iam fazer assim. Para onde foi minha Iéssi?

Era Iéssi quem cuidava de Náique no bando. E, quando ela foi capturada, Úgui ficou com o menino. Sempre soube que tinha desapontado Náique, com aquela história sobre anjos. Só que nem que quisesse poderia ter sido mais convincente.

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