09 - O diabo vai chegar numa Brasília verde

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Quando eu estava na terceira série, a professora de educação artística mandou a classe dividir-se em três grupos de doze alunos pra fazer uma apresentação de teatro pra feira do livro, que acontecia em todos os meses de agosto, naquela tradicional escola do Morumbi, bairro nobre de São Paulo, na qual eu era bolsista por ser filho de professora. A mim coube, além da função de escrever a peça, interpretar o personagem principal: um guitarrista esquizofrênico que conservava o hábito de apedrejar igrejas nas madrugadas de lua cheia. 


Caraca, véio, o que é que eu queria arrumar pra minha cabeça ao dar-me este polêmico personagem?


Eu somente seria expulso daquele lauto colégio três anos mais tarde, no meio da sexta série, ao falar pro professor Antônio, de história, que compreendia bem a origem símia do homem assistindo às aulas de geografia. Ele era marido da professora de geografia.


Contudo já deixava a situação bem feia pro meu lado ao acumular problemas que carregaria nas costas por todos os anos que lá permaneceria. Como se não bastasse o bullying sofrido por chegar todos os dias na escola numa Brasília verde 78, enquanto os coleguinhas iam de Del Reis, Santanas, Monzas e Escorts do ano, naquele segundo tempo da década de oitenta, eu ainda escolhia os caminhos mais difíceis pra caminhar pelos meus já esgotados anos perdidos da minha finada (UFA!) tenra infância.


Qualquer semelhança com os dias atuais da minha vida é mera coincidência. Nunca fui muito hábil pra decidir como me comportar. A partir de então, além de ser o pobre, filho da tia da Brasília verde, eu também era herege, abominável e escrotinho.


Uma semana e meia após a dramaturgia, fui almoçar no refeitório do colégio (estudava em período integral).


Peguei o bandejão, servi-me de suco, bife, batata frita e sobremesa, dispensando os gosmentos feijão e arroz, e sentei-me junto às demais crianças.


Não foi surpresa nenhuma ver a menina da cadeira vizinha levantando-se e mudando-se de lugar. Isso acontecia sempre. Eu só não esperava que a professora, que observava tudo à distância, interviria, tentando impedir que a Nicole concluísse o seu ato escancarado de discriminação explícita.


– Perto desse filho do diabo eu não sento, tia. Eu rezo todas as noites pra ele morrer – esclareceu convincentemente a amável coleguinha.


Estava justificadíssimo!


A professora olhou pra mim, olhou pras crianças, alimentou uma fisionomia de dúvida por alguns instantes, abriu a boca e elevou o dedo indicador em riste como se fosse dizer algo semelhante a um discurso de um Martin Luther King que defende os brancos pobres que vão pra escola numa Brasília verde e interpretam esquizofrênicos que apedrejam igrejas, entretanto... baixou o dedo, arriou os olhos e disse:


– Tá bom, Nicole.


No domingo seguinte, fui à igreja com a minha avó, que era uma católica fervorosa.


Vi uma velhinha ajoelhando-se na frente da imagem de uma santa e fazendo uma promessa.


Eu queria morar na República Tcheca e outras crônicasOnde histórias criam vida. Descubra agora