Capítulo 0 - Prólogo

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O céu me parece melancólico hoje. Nuvens escuras escondem o sol da tarde e a água do mar tem a cor da noite, tão gelada quanto o inverno. Deve estar nevando lá fora. Não sei. E também não me importa.

Essa parte do planeta é mais fria mesmo, muito mais do que o normal. De vez em quando tenho que desviar de imensos blocos de gelo flutuando, mas esse frio não me incomoda. Pelo contrário, me faz sentir mais vivo.

É difícil enxergar para onde eu estou nadando mas, mesmo assim, eu não paro em momento nenhum. Estou deixando meu instinto me guiar.

Uma única palavra se repete em minha mente, geralmente vazia: Fome.

A Fome é aquilo que me faz viver, que me dá energia para procurar outras formas de vida. É aquilo que me guia, que faz meu mundo girar.

Eu não sinto raiva, não sinto felicidade. Não sinto amor, paixão, ódio, tristeza... Minha vida não tem um propósito específico, pelo menos nenhum que eu tenha descoberto. Não que eu tenha parado para pensar nisso... Veja bem, eu não sou muito de pensar. Simplesmente faço aquilo que quero, na hora que me deu vontade. Não tem mistério nenhum. Não fico me perguntando "por que estou aqui?" ou "quem sou eu?". Não faz diferença eu saber quem sou ou não. Vou continuar sentindo fome e cansaço.

Ah sim, cansaço. Também sinto isso, claro. Sou um ser vivo, afinal. Uma hora eu preciso parar para descansar, e quando sinto fome novamente, parto em uma nova jornada em busca de alimento. É um ciclo repetitivo, mas nunca me incomodou.

Também tenho necessidades fisiológicas, óbvio.

Gosto de nadar. Não é algo que me faz necessariamente feliz, já que eu não entendo o conceito de "felicidade", mas eu prefiro nadar a andar. Movimento-me mais rápido dessa forma. E quando estou com fome, gosto de encontrar logo meu alimento.

Muitos acham que é necessária uma grande preparação para caçar. Cálculos meticulosos, esperas infindáveis, pensamentos que tentam prever a reação da presa.

A reação é a mesma em 99,9% das vezes: a presa vai tentar fugir. Não é difícil de entender. O instinto do animal diz que ele precisa salvar a própria vida.

Pra quê gastar horas tentando prever exatamente o que a presa vai fazer, enquanto seu estômago ronca e tira a sua concentração? Não entendo os predadores terrestres.

O elemento surpresa é bom. Quando a presa menos espera, basta atacar. Pegá-los por baixo.

Aqui no fundo do oceano tem muitas coisas para se comer. A diversidade de peixes, répteis, mamíferos e outros seres que eu não conheço é algo que às vezes me faz parar e pensar.

Pensar em qual será o cardápio do dia.

Neste momento, meu estômago ronca por algo novo. Por algum motivo que eu não sei bem explicar, sinto vontade de caçar em terra.

Não costumo questionar minhas vontades. Apenas as aceito, então, vou seguir em direção à orla. Não deve ser muito longe daqui. Sinto as correntezas me puxando e o chão arenoso cada vez se aproximando mais da minha barriga. Peixes pequenos fogem quando eu passo perto deles. Claro, sou muito maior do que eles. Sei que os assusto.

Não me orgulho disso. Não por ética ou moral. Nada disso. Eu simplesmente não sinto muitas coisas. Já disse isso. Vou deixá-los fugir de mim, por ora. Não estou com vontade de comê-los. Quero algo que possa locomover-se em terra.

Agora que estou perto da margem, resolvo parar e ir para a superfície. Preciso respirar. Assim que minha cabeça sai da água, o frio fica mais intenso. Eu estava certo, realmente está nevando aqui fora. Inspiro o ar com força e olho ao meu redor. Consigo ver pedregulhos na areia, onde as ondas batem com calma. Mais atrás, vejo uma floresta fechada, escura, com as copas das árvores esbranquiçadas pela neve. Não tem ser vivo algum por aqui.

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