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Rose

Uma angústia atroz arrancou-me do meu estado inconsciente.

Lembro-me de um vago sonho sobre a guerra e um dragão. Tento levantar-me mas um peso impede-me que o faça. Olho para o meu corpo e vejo Miguel deitado, sobre mim, enquanto uma enorme poça de sangue nos circunda. Vários fragmentos rochosos se encontram espalhados à nossa volta e encontram-se emergidos em sangue.

- Miguel - abanei-o e o seu corpo frouxo cai sobre o chão - Miguel!!!

Recordo o momento em que vira esta cena e o peso da realidade cai sobre mim, esmagando-me. Tinha falhado. A ilusão passara a verdade e todo o meu mundo caiu. Atiro-me para o chão e agarro o seu corpo ensanguentado. As minhas lágrimas caem como dois rios e os meus gritos de terror e sofrimento ecoam por todo o campo. Um trovão resvala entre as nuvens e uma chuva intensa abate-se sobre a terra.

- Não!!!

Tento acordá-lo e chamo-o, em vão. A chuva lavava-lhe o sangue que lhe manchava o rosto, agora encostado ao meu peito. Agarro-o desesperadamente e embalo-o, perdida. A tempestade envolve-nos e encharca-nos. A sua pele fica gelada. Como a dos mortos. Ajoelhada na lama que se formara à nossa volta, afundo a cabeça no seu peito e choro. Sinto que um buraco no céu se abre e todo o universo cai sobre mim. A sensação de solidão invade-me os pulmões e engasgo-me entre lágrimas e soluços. Deixo-me ficar ainda um pouco encostada a ele, juntando os cacos em que ficou o meu coração. Num momento, deixo de sentir tudo e algo em mim morre. Não voltaria a ser a mesma Rose, nunca mais. Sinto um enorme vazio e uma agonia sufocante que me irrompe pelo peito. Tenho vontade de morrer. Olho novamente para o seu rosto e beijo-o ternamente. Algo se remexe no nevoeiro e sou arrancada do meu estado de demência.

Levantei a cabeça, arrasada, e vi uma mulher no meio da tempestade. A minha tia. A mesma que me abordara no celeiro da aldeia. O seu olhar transbordava rancor e um sorriso vitorioso iluminava-lhe o rosto. "Foi ela". A fúria começou a crescer dentro de mim e uma orquestra de trovões retiniu nos meus ouvidos. O vento ergueu-se e fustigou-nos, revolvendo-se tal como as minhas emoções.

- O que é que lhe fizeste? - rujo, completamente fora de mim.

- O mesmo que farei agora contigo...

O seu sarcasmo arde-me nas veias e todo o meu raciocínio se dissipa na tempestade. Um ofuscante trovão abate-se sobre a mulher que cai no chão. Concentro-me e uma enorme raiz nasce do solo. Elevando-se no meio da tempestade, precipita-se sobre o corpo enlameado e envolve-o com força. Volto a olhar para Miguel e uma onda de desespero trespassa o meu coração. As raízes apertam mais e começam a esmagar a mulher que se contorce de dor.

- Pára! - geme ,aflita.

- Tal como tu paraste enquanto ele morria?

A chuva ainda não deixou de cair e todo o meu corpo se encontra molhado. O desespero e a cólera acentuam-se quando a mulher se ri ao ver-me despedaçada. Ouço os seus ossos fraturarem-se e as suas asas torcem-se devido à força que lhe emprego.

Quando me acalmo um pouco, tomo consciência de várias presenças que pulsam dentro da minha mente. Chamo-as a mim e descubro que a tarefa de envolver todos os Guardiões foi bem sucedida. A guerra ainda decorria e precisavam da minha ajuda. A raiz volta a ser engolida pela terra e o corpo da mulher cai no chão, inanimado.

Volto a envolver Miguel com os meus braços e tento despedir-me mas não sou capaz. Recuso-me a aceitar que não o voltarei a ver, que não voltarei a ouvir o seu riso e a sentir a sua pele sobre a minha. Sou trespassada por um desvario de emoções e o fraquejar de uma das presenças traz-me de volta à realidade. A minha mãe estava em perigo!

Levei uma das mãos de Miguel até ao meu rosto e tentei absorver a sensação da sua mão na minha pele. Beijei-a, desolada, e decidi partir. Voltaria, mais tarde, para o vir buscar.

Invoquei os meus poderes e localizei o local onde decorria a batalha. A ira revitalizou todos os meus sentidos e comecei a correr. Fui salpicada pela lama enquanto os meus pés saltavam pelas poças que a chuva formara.

Os Guardiões tinham vindo por mim. Agora, precisavam da minha ajuda e eu tinha de ajudá-los. Não podia deixar que me tirassem mais pessoas. Perdera Miguel mas não perdera a esperança. Algures no meio da guerra, a minha mãe estava em apuros.

Acelerei o mais que pude, desejando não ser tarde demais.

Atravessei o bosque que separava os dois locais, serpenteando entre as árvores. A ramagem espessa abrigou-me do dilúvio que ameaçava inundar a terra e tomei consciência do quanto estava molhada. Geladas gotas de água escorriam pelo meu cabelo caindo depois sobre o meu pescoço.

O nevoeiro começou a dissipar-se e pude ver a batalha. O Concelho da Chama Eterna estava a levar a melhor. Alguns Guardiões gemiam e gritavam no chão enquanto outros lutavam para se proteger mutuamente. A figura da minha mãe ainda se encontrava no meio do descampado e lutava com vários soldados que a tentavam prender. Uma espada reluziu e ergueu-se na sua direção. Reconheci o homem que a carregava e o ódio turvou-me a visão.

Um mar de raízes ergueu-se das entranhas da terra e caiu sobre os soldados. Corpos voaram por todo o descampado afastando os soldados dos Guardiões. Enquanto caminhava para o centro, todos foram afastados do caminho. As raízes erguiam-se, imponentes, e derrubavam os nossos inimigos.

Os soldados que agarravam os membros da minha mãe foram projetados e a figura do meu pai prevaleceu hirta, intocável, defronte de nós.

- Não conseguirás vencer - atirei, desdenhosa.

Juntei a minha mão à da minha mãe e juntamos os nossos poderes. A sua força e vitalidade fluíram através de mim. O céu continuava carregado de nuvens negras e a tempestade estalou. Rajadas de vento açoitaram o descampado e o ribombar dos trovões sobrepôs-se ao estrondo da chuva. Um enorme campo de energia se gerou ao nosso redor e o tempo pareceu dobrar-se sobre si mesmo até parar.

-Escolheste o lado errado... - um sorriso depravado surgiu nos seus lábios e ele ergueu as suas mãos.

Duas espessas colunas de fumo negro se formaram nas palmas das suas mãos rodopiando como dois pequenos furacões. O seu olhar cruzou-se com o meu e as colunas começaram a mover-se. O vento aumentou e o meu cabelo foi atirado em todas as direções.

- Rose, vais ter de usar magia - a minha mãe gritava entre os uivos da ventania - Tens de confiar em mim e fazer o que te digo. Entendeste?

Acenei afirmativamente com a cabeça. Pediu-me que ergue-se as mãos e assim fiz. Repeti, concentrada, as palavras que a minha mãe me gritou e uma bola de luz surgiu do interior das minhas palmas. Fiquei fascinada com o seu brilho e o seu calor. Indicou-me, depois, um novo feitiço que fez aumentar o tamanho da esfera. Deduzi a última explicação antes que ma dissesse. Abri as mãos e dirigi a luz a um dos tornados negros que avançava na nossa direção. Toda a sua estrutura fraquejou ao receber a esfera cintilante que absorveu metade do seu fumo sombrio. "Apenas a luz é capaz de combater a escuridão". À medida que as bolas foram sendo atiradas, os tornados enfraqueceram e foram diminuindo de tamanho até todas as trevas terem sido engolidas pela luz.

O semblante do meu pai transfigurou-se e adotou uma expressão sombria. Toda a sua figura se decompôs e, no seu lugar, algo enorme e obscuro começou a ganhar vida. Já não possuía uma forma humana e era, agora, uma espessa massa de ar negro e denso.

- Junta as tuas mãos por cima das minhas - gritou, aflita, a minha mãe.

A massa de ar envolveu-nos e a escuridão tomou um peso insuportável. Todos os meus sentidos, para além da visão, pareceram entrar em parafuso e consegui apenas vislumbrar a minha mãe que mexia, freneticamente, os lábios. "Um feitiço". Senti as palmas das minhas mãos começarem a aquecer e uma claridade ofuscante saiu do pequeno refúgio que as nossas mãos formavam. Vi-a sorrir e a esperança renasceu em mim. Algo duro e frio surgiu entre as nossas mãos. Quando me acenou com a cabeça, abrimos em simultâneo as mãos e o cristal da nossa família pairou no ar.

Um uivo de ódio ecoou nos meus ouvidos e uma luz intensa propagou-se em todas as direções. Senti na pele o seu sofrimento enquanto as trevas eram sugadas pelo poder do cristal. Todo o campo de energias desapareceu, levando consigo a escuridão e o cristal.

A Guardiã do Medalhão SagradoOnde histórias criam vida. Descubra agora