Capítulo III

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Uma mesa de seis cadeiras nos dividia.

- Boa noite, Julie - a voz era mais grave, porém convidativa, exaltada. Como um garçom oferecendo insistentemente um assento.

Não respondi. Fixei os olhos nele e dobrei as pernas. Queria força para correr, se fosse preciso.

Ele era alto, calvo, com a pele queimada de sol. De idade, aparentava ter mais do que acho que tinha, acima de 40 anos. Tinha um bigode espesso, usava avental branco e tinha nas mãos um cutelo. Trocava a visão do seu rosto para o objeto, caso houvesse algum movimento.

Reparei que estava ofegante e suando frio.

- Você se saiu bem até agora – ele quebrou o silêncio e meus pensamentos -. Parece ter garra para conservar sua vida. Mas um aviso: até agora, todos que passaram por esta cozinha – e girou a mão com o cutelo ao redor do cômodo – não conseguiu passar adiante.

- Obrigado por avisar.

- Bom, como você percebeu. Você terá de me enfrentar.

Um passo atrás.

- Presumo que você seja uma espécie de "boss" ou algo assim.

- Se você já jogou os games clássicos, sabe como funciona a terceira etapa.

- Ah, você é o Dr. Eggman ou Nemesis, isso?

Uma gargalhada.

- Você tem bom humor. Aí estão as regras: pegue a chave e saia da cozinha.

- Sem armas?

Ele apontou o nariz para a direita. Três facas domésticas estavam alinhadas.

Era uma questão de tempo para abaixar até área do lado da cozinha, pegar qualquer uma e lançar na direção dele. Até eu pensar nisso, ele já dividiu meu rosto em duas partes.

- Antes do jogo começar, gostaria de mostrar uma coisa. Estarei desarmado, pode ficar tranquila.

Assenti com a cabeça, controlando a respiração.

Última olhada nas facas.

Atrás dele havia um fogão de seis bocas velho, um armário de madeira escura com várias gavetas e uma pia coberta de barro. Demorei para notar, mas o chão, decorado com piso alaranjado estava imundo de barro e o que mais estivesse aí.

Ele foi andando à minha esquerda com passos grossos. A bota preta ficava um pouco escondida com o avental impecavelmente branco. Ele se aproximou da geladeira azul clara – três metros de distância – e a abriu, mostrando para mim o que continha.

Ele esboçou um sorriso pra mim, apontando um canto da terceira bandeja da geladeira. Eu segurei a boça com uma mão e a outra no estômago por alguns segundos. Com vários sacos vedados, pedaços de membros humanos estavam depositados ali, rosados e conservados. Vários sacos para uma refeição de um mês ou mais, empilhados por entre as divisórias. E no canto da segunda bandeja, à esquerda, havia um espaço com uma identificação feita de papelão.

"JULIE".

- Eu que fiz – ele contou, ainda segurando o sorriso.

- Não ficou ficar aí nessa geladeira.

- Ah, rs. Isso não foi convincente. Diga com mais convicção. Quero ouvir.

- Não vou ficar nessa merda de geladeira.

- Ainda não me convenci. Você é uma fraca. Um peso. Um nada.

- Você que vai apodrecer aí dentro de um plástico.

- Ah, é? Você vai me colocar lá? Acho que não, franguinha. Diga! Vai ficar nessa porcaria? Você vai mofar aí dentro!

- NÃO VOU FICAR NESSA PORRA DE GELADEIRA!

Foi um milésimo. Ele deu um tapa na geladeira para fechá-la. Eu dei um salto para a esquerda, caindo no chão. Ele empurrou a mesa para frente. Eu caí. Ele foi pra frente, jogando a cadeira para os ares. Eu rapidamente peguei uma das facas. Ele ergueu o cutelo para cima. Eu girei para frente, próximo do corpo dele. Ele lançou para frente deixando o cutelo com a ponta para baixo. O cutelo rompeu o piso, fazendo um barulho agudo e estridente. Eu me virei para ele e, sem mirar ou raciocinar ou pensar, lancei a faca na direção. A faquinha nem ao menos causou dano aos pelos do braço largo.

Foi segundos. Rolei para trás. Ele rapidamente se levantou. Chutei uma das cadeiras, em vão. Ele me pegou pela perna e me lançou contra a parede do outro lado da cozinha, me fazendo bater num armário de condimentos. Ele se dirigiu para trás e e puxou uma gaveta. Olhei para trás e vi alho, cebola, molho inglês, molho de alho, molho shoyu e molho de pimenta. Ele pegou outro cutelo. Eu peguei o frasco e tirei a tampa. Ele veio na minha direção. Eu me ergui incrivelmente. Ele jogou o facão poucos centímetros do meu rosto. Eu lancei o líquido avermelhado nos seus olhos. E lancei de novo. E de novo.

- Sua puta!

Ele se virou para trás, pegou impulso e me deu um soco no olho. Ele remexeu na gaveta. Caí no chão. Ele pegou a camisa e tentou secar o olhos. Tirei o cutelo da madeira do armário onde tinha fixado. Ele pegou outra faca e se virou.

Como tora de árvore que tomba após ser cortada, o cozinheiro caiu no chão com o cutelo cravado na testa, perto da sobrancelha direita. Ainda com vida, puxou meus pés Caí novamente, mas subi em cima dele e afundei o cutelo, permitindo a lâmina atravessar a sua pele até a carne.

Ele parou de se debater.

O Jogo do PoçoWhere stories live. Discover now