Capítulo X

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De acordo com meu pai, eu fui estuprada por dois caras. Eu e minha amiga química. Amélia não resistiu os ferimentos e morreu. Eu tive uma pequena hemorragia e outras coisas que meu pai não quis contar. Me acharam numa esquina e entregaram-me para um hospital público. Fiquei dois dias apagada, até meus pais localizarem. Depois fui submetida e exames e aí Marcos pulou uma parte. Fui direto para uma clínica de reabilitação. Depois de uma semana, fomos expulsos de lá pelo meu comportamento agressivo. Fomos para outra clínica - esta que estou no momento - até ser violentada por um enfermeiro, que está preso na mesma penitenciária que os outros dois estupradores. Segundo meu pai, não é a primeira vez que ele conta essa história para mim. E não é a primeira vez que eu esqueço.

Eu apenas ouvia e ficava calada, ouvindo cada parte da narrativa e reagindo com expressões faciais. Minha mãe estava se recompondo, soluçando um pouco e tomando café. Meu pai segurava a minha mão e contava cada parte com o intuito de que eu entendesse o real significado de eu estar naquela clínica há uma semana. E ter fugido quatro vezes.

O prontuário dizia que eu tinha uma doença comum entre pessoas que passam por traumas. Óbvio que meu pai não deixaria eu ver, mas para mim não fazia diferença.

Entendeu, filha?

Sim, pai. Entendi.


Eu vou falar com o médico- minha mãe saiu rapidamente pelo quarto.

Um beijo quente preencheu minha bochecha e um cafuné leve do meu pai.

Julie. Quer comer alguma coisa? Antes que o médico entre para te analisar?

Hmmmm...gostaria de comer uma barra de chocolate. Posso?

Claro, vou buscar para você - e saiu em seguida, se despedindo com um sorriso.

Meu pai acreditou naquilo? Sério que ele foi tão ingênuo? Como a polícia, ou o hospital, qualquer que fosse, pudesse falar para ele que eu fui estuprada? Eles não viram as marcas pelo meu corpo? Ignoraram? Como podem ser tão mentirosos e burros! Meus pais mereciam a verdade. Eles deviam saber que eu fui sequestrada, torturada e quase morta por aqueles imbecis, que com certeza não devem estar na cadeia.

Eu observava o corredor, me preparando para gritar caso eu reconhecesse alguma sombra familiar.

Filha, toma - e me entregou um barra com uvas passas.

Minha mãe entrou em seguida.

Julie, ótimas notícias - o sorriso era fraco, mas dava para notar que estava feliz. Um médico estava ao lado dela - o doutor disse que você poderá ficar em casa por dois dias! Para ajudar no processo de readaptação. É ótimo! - e bateu palminhas.

Ouviu, Julie? Matará a saudade de ir para casa casa- lembrou o médico.

Não faz muito tempo que saí de casa.

Eles se entreolharam e desconversaram.

Por que o senhor mentiu para os meus pais?

Do que está falando, querida? - indagou minha mãe, com a fisionomia alterada.

Você sabe que eu não fui estuprada.

Julie... sabemos que seu quadro ainda é delicado e...

Acha mesmo que eles vão engolir essa história de estupro quando na verdade, eu fui torturada num lugar que eu nem faço ideia?

Julie - começou meu pai - encontramos você aqui mesmo na clínica.

É mentira! É mentira! Eu fui sequestrada e os culpados estão lá fora! Eles mentiram para vocês! Vocês dois!

Lentamente minha mãe foi saindo da sala.

Querida, se acalme...

Não posso me acalmar! Eles vão me pegar de novo! Vocês precisam fazer alguma coisa! Eles estão mentindo para você! Não vê!

Filha, fui eu que te encontrei.

Besteira, não foi você. Eles estão mentindo! Estão mentindo!

Julie, por favor - e segurou meu braço.

Me larga! Me larga!!! São mentirosos!

Julie!

Uma enfermeira entrou, segurando uma seringa.

Mentirosos! Mentirosos! Hipócritas! Me larga, pai!

Julie, por favor. Pare...por favor...

Eles, eles vão fazer isso de novo. Vão me sequestrar de novo. Pai! Pai! Não acredite neles! Me tira daqui! Me tira daqui!

Todos meus gritos, minha agitação e a tentativa de convencimento foram apaziguadas por algo que entrou na minha corrente sanguínea. Me acalmou de forma irregular, involuntária e tudo começou a ficar lento e embaçado. Pesado. Sentia meu corpo pesado. As pálpebras iam fechando, não conseguia distinguir os sons.

Estava descansando forçadamente. Mas...era uma sensação boa.

Um canto do olhos esquerdo ainda estava aberto e resolvi focar meu último sentido de atenção para o corredor. Não havia muitas pessoas passando. Uma criança, alguém com um andador, um homem, uma senhora curvada... um homem. Encapuzado. Ele sorria pra mim e acenando. Ele parou de frente para o meu quarto e sorria.

Eu fechei os olhos.


O Jogo do PoçoWhere stories live. Discover now