Sabe quando você está curtindo aquele dia ensolarado, sentado na grama fresca, com seus óculos escuros, deitada, vendo o dia passar? Até que o sol é interrompido por tímidas nuvens que diminuem a força do sol por pequenos períodos, para dar entrada a nuvens carregadas e aquele clima acizentado, nublado? Bom, eu estou deitada agora, no chão frio, com poucas luzes, sabendo que não terei sol, nem grama, nem nada além de um clima nada agradável. E tudo por causa dele. Do filho da mãe que está na minha frente. Ele me roubou o sol.

Sabia que se levantasse de imediato para dar um soco nele seria uma má ideia, porque estou fraca e Renan seria mais rápido. Ele estaria pronto para isso, depois do que disse. Incomodava a ideia de impotência frente a um sequestrador, ainda mais quando ele está cara a cara.

Eu que te coloquei aqui dentro, onde você deveria estar. Pensa bem: está protegida aqui. Não tem roubo, extorsão, mentiras, deboche, nada do mal que há lá em cima. Apenas a verdade. Você está aqui por um motivo e eu estou aqui para cumprir o papel de garantir sua pena, sua dívida com a sociedade.

Qual foi a merda que eu fiz? - indaguei, sentindo dores ao falar.

Parece que a pancada que demos foi feia. Você nem se lembra. Eu não vou contar tudo, porque você vai acabar lembrando um dia e eu odeio retrabalho. Mas, você é uma garota popular, muito popular. Cercada de amigos, caras querendo te beijar, festas, sociais, bebidas, convites. Uma vida perfeita, maravilhosa.

Eu me lembrava de amigos e festas, porém sem essa grandiosidade que ele estava falando.

E daí? O que tem isso?

Você precisava jogar esse poder na nossa cara. Mostrar que era a abelha rainha e incomodava se os súditos dissesse "oi". Não éramos dignos de conversar com a realeza da cidade. E você deixou isso bem claro.

Não me lembrava de atacar ninguém na minha vida. Muito pelo contrário. Para quem tem pais separados de uma cidade pequena, precisa lhe dar com perguntas e frases indesejadas. Mas, que merda eu fiz?

Ele percebeu minha expressão incrédula.

Você mostrou o seu ferrão para nós, meros súditos de sua colmeia. E agora, é hora de pagar.

Seja lá o que está falando, eu sei que não machuquei vocês - e fui interrompida com um puxão no meu braço para me erguer e começar a andar.

Na verdade foram poucos passos, o suficiente para o túnel acabar e eu vir parar num salão de festas.

A decoração lembrava uma festa de formatura. Mesas redondas com toalhas brancas, enfeitadas com um vaso de flores, um cartão e pequenos pratos de plástico de cor vermelha. Cada mesa tinha a capacidade para quatro pessoas. O chão era de um piso escorregadio, com tons de creme e os desenhos de margens levavam à frente do salão, com um palco negro, tendo um púlpito à esquerda com um microfone e atrás, um telão. O lugar cheirava a lavanda e cera, tendo as paredes cobertas por cortinas avermelhadas.

Um garçom se aproximava, trazendo nas mãos uma bandeja de madeira contendo um prato de salgados e um pequeno bilhete. Ele andava com pressa até a minha direção.

Olha, tem lanchinho pra você, Julie - Renan se atentou, sarcasticamente.

Foda-se. Não vou comer essa porcaria.

Ah, azar o seu. Eu como, então - e pegou da mão do garçom o prato com o bilhete.

Vamos - e pegou meu braço e andou até uma das mesas, próximo ao telão.

Sentamos e eles começou a beliscar os salgados. Tinha um cheiro forte como se tivessem sidos assados na hora. Eu estava com fome, mas não iria comer aquilo, por mais que quisesse.

Agora faça silêncio para vermos a apresentação. Depois tem a festa.

Tem mais pessoas aqui?

SHHHHHHHHHHH! Quieta. Vai começar.

As luzes se apagaram.

Fotos da minha infância se mostravam no telão:

Eu correndo na praia com sua mãe.

Festa de aniversário.

Brincando com duas crianças.

Tomando sorvete.

Andando de bicicleta com rodinha.

Uma música de fundo aparece. É uma música de ópera.

Eu beijando um garotinho.

Eu comendo uvas na cozinha.

Uma frase dizendo: As boas pessoas mudam.

Fotos de quando eu era adolescente.

Como vocês conseguiram isso? - indaguei.

Não tinha mais ninguém do meu lado.

Eu com meus amigos dentro do carro.

Uma selfie com as amigas no shopping.

Foto com amigos no Parque de Diversões.

Vídeo com meus amigos na minha casa, cozinhando.

Vídeo com meus pais me dando um carro de presente.

Vídeo com minhas amigas pulando numa piscina.

E vários outros arquivos rodando simultaneamente.

Comecei a chorar e gritar de nervoso.

O que fizeram com eles? Hein? Sequestraram meus amigos também? Soltem eles! Soltem todos eles! Por favor. Eles não merecem nada disso! Se eu fiz algo com vocês, me machuquem, não a eles!

E desabei a chorar.

Chorar. Chorar.

Até que lembrei do pequeno bilhete. Tirei as dobras e li o conteúdo:

A saída é por cima.

Meus olhos se viraram para o teto, pesquisando alguma coisa que remetesse a sair dali. Ou não, encarar mais alguma coisa mortal, do qual terei que me sacrificar mais uma vez. Não encontrei nada, nenhuma porta, corda ou... ah! Uma escada azulada na outra extremidade do salão.

O ar começou a ficar embaçado, acinzentado. E parecia vir de baixo pra cima. Dei alguns passos para a direita indo em direção à escada. Foi apenas isso, não tive culpa de nada.

E caiu um um pedaço de madeira em chamas no chão, centímetros de distância dos meus pés. Logo todo o salão foi tomado por labaredas que caminhavam por todas as extremidades, iluminando e consumindo cadeiras, mesas, cortinas, o telão... e eu.

A chance era correr, evitando ser lambida pelo fogo e pelos tocos de madeira. Dei um salto e fui em direção á escada, cujo primeiros degraus já estavam flamejando.

Garrafas de motolov invadiram pelas janelas do alto do salão, contribuindo para o aumento do fogo. Era como se os idealizadores desse inferno dissesem: "Anda, Julie. Sua vaca, lerda, corra! Vai morrer no salão queimada!". Mas isso não iria acontecer agora. Agarrei o mais alto que pude do salão e comecei a subir. Uma última olhada para o salão.

Apenas fogo e os barulhos de crepitação. Aonde eu estava há poucos minutos, estava se transformando em cinzas. Subi o mais rápido que pude. Do último degrau da escada, senti um balanço, como se alguém lá embaixo estivesse sacudindo a escada.

Eu ia cair e morrer queimada.

A minha frente, havia uma base de concreto, que dava para uma porta de madeira escura. Era a minha chance. A escada começou a deslizar para trás. Agarrei na base e peguei impulso para subir à porta. A escada caiu e estava aliviada por abrir uma porta escura.

Abri. E apenas tinha uma coisa.

O Jogo do PoçoWhere stories live. Discover now