Capítulo IV

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A porta de saída sempre esteve aberta, pelo menos a da cozinha. E lá, mais uma vez, eu avistava aquele túnel frio.

As mãos ainda tremiam.o ante braco salpicado de sangue, os dedos, minha camisa e com certeza meu rosto. Meus dentes rangiam e eu tentava forçar os pés para continuar.

Lancei água da pia e retirei boa parte do sangue. Uma sobrancelha havia adquirido tons avermelhados com a luta. Eu tinha escoriações e cacos de vidro grudados nos cabelos e no pé esquerdo. Me livrei de tudo isso.

Queria muito chorar. Ajoelhar e me entregar como um cordeiro que sabe quando será imolado. Mas algo dentro de mim avisava que não era esse o plano. Não era demonstrar fraqueza. Escondê-la e evitar qualquer sintoma de desistência. Chega de drama. Estou nesta merda de lugar e preciso sair daqui viva, não importa como.

Peguei as duas facas intactas e as escondi na cintura. O frio da lâmina não atrapalhava. Tirei uma maçã verde em cima da geladeira de pessoas esquartejadas, um isqueiro cinza e saí daquela porcaria.

Mais uma vez estávamos eu e o túnel, acompanhados do silêncio e da tímida chama que tentava desmascarar qualquer surpresa. Um beco escuro as duas da manhã seria mais convidativo, Caminhei durante dois minutos alternando a chama para esquerda e direita, esquerda e direita para ver se não aparecia mais alguém.

- Mas você vai demorar muito pra chegar? Está sozinha?

Meu reflexo foi olhar para cima. A voz, melódica parecia ter vindo de algum radio, pelo chiado. O tom de indagação era muito, muito familiar e não consegui segurar uma gota que escorria dos meus olhos aflitos.

- Mãe?

Silêncio.

Chiados de rádio.

- Ela sabe se virar sozinha, Cristian. Nossa filha sempre foi cuidadosa com essas coisas.

- Clara? Aqui é a Sofia. Minha irmã, Julie, não veio dormir em casa hoje. Ela dormiu na sua? Sabe onde ela está?

- Aqui é Cristian. Minha esposa Susane ainda não achou a Julie. Sabe se aquele período de tempo pode ser interrompido pela polícia. Não quero mais esperar. Ela nunca fez isso.

E repetiram isso varias vezes, cada vez mais rápido e com as vozes distorcidas.

Estavam me procurando.

Uma onda começou a queimar minhas pernas como se eu estivesse em perigo e precisasse correr como uma maratonista. Eu estava com raiva.

- Eles vão me encontrar!

- Paul, aqui é Anne. Estou procurando a Julie...

- Você sabe se a Julie viu alguém...

- Ela conheceu algum cara...

- Julie não postou nada ontem...

- Ela não foi a nenhuma festa?

- Você a viu num supermercado?

- Vovó, a Julie deu uma passada pra te ver?

- Pode checar as câmeras no seu banco? Ela vai regularmente aí...

- Você viu minha filha, Carmen? É não sabemos onde ela está...

- Ela não foi ao shopping com vocês?

E repetiram varias vezes as gravações.

Uma risada masculina grave ecoava junto com o áudio.

- Mãe! Pai! Mãe! Eles vão me encontrar, sei que vão... E vocês vão pagar! Ouviram?

- Ruuuuuu, soprei a velinha, papai. Olha. Posso fazer o pedido?

Meus pelos eriçaram.

- Pode pedir o que quiser, querida.

- Eu quero chocolate com chantilly!

- Você não pode falar o que deseja. Dá azar...

Risos interrompidos pelo corte da gravação.

Eu me lembro desse dia como se estivesse vivenciando no momento. Um dia antes de meu pai pedir o divórcio, ele me deu a melhor festa de aniversário. Todos os meus amigos estavam lá. Uma década de vida. Em festas posteriores, eu sonhava em ter aquela porção de felicidade que tive naquela data.

E meus sequestradores roubaram aquilo da minha casa.

Entraram na minha casa, agrediram meus pais, minha família e roubaram aquela recordação. Lágrimas desciam dos meus olhos, escorrendo pela face suja de suor e sangue. Aquelas gotas não eram de tristeza.

Dei um passo.

E como um rádio defeituoso, vários trechos da minha vida eram ecoados pelo túnel. Gravações que nem eu mesmo lembrava. Aquilo me gerava uma raiva a ponto de fechar as mãos e forçá-las a até as unhas ferirem a palma. O som ia aumentando e tomando conta do túnel. Fiquei desorientada.

Corri.

Foi a minha reação. Lágrimas e os pés trabalhavam juntos enquanto eu ia ouvindo a minha trajetória pelo espaço semi escuro. Eles distorciam as vozes, alternando entre agudas e graves, a ponto de me levar a loucura. Ainda doía as pernas pelas escoriações dos cacos.

Tropecei e caí, ralando o braço direito. Eu deixei. Permiti ficar deitada, sentindo a dor do braço, das pernas, da cabeça e ouvindo repetidamente as vozes da minha família.

Enlouqueci.

- Por que estão fazendo isso! Por quê! O que foi que eu fiz! Me digam! Qual foi a merda que eu fiz! - e gritava.

As vozes pareciam ir aumentando a ponto de eu não ouvir o que eu estava falando.

Até que...parou. Em apenas uma voz.

- Julie? Julie, está aí?

Parei de gritar. Na verdade, parei de fazer e pensar em qualquer coisa.

- Julie, minha filha. Está bem?

- Mãe... Mãe, está aí?

- Sim, meu doce. Está machucada, ferida, como você está?

- Eles te pegaram - afirmei, com a voz embargada - ah, meu Deus. Pegaram mais alguém?

- Não, só nós duas, meu doce.

- Mãe, onde você está?

- Vamos dar um jeito de sair daqui, querida. Está com frio?

- Não, mas precisamos sair daqui, mãe. Consegue descrever o lugar? - as lágrimas saindo.

- Vamos dar um jeito de sair daqui, querida. Está com frio?

- Mãe, me escute... Está num tún...

- Vamos dar um jeito de sair daqui, querida. Está com frio?

- Vamos dar um jeito de sair daqui, querida. Está com frio?

A voz foi afinando. E afinando até ter uma interferência e parar numa voz grave.

- Legal esse lance de mudar a voz. É uma das maravilhas da tecnologia.

- Cretino. Você invadiu a minha casa, pegou minhas...

- Relaxa, a cretina aqui é você. Apenas está pagando seu crime.

- Que crime, que crime? Não fiz nada!

- Isso é muito clichê. Tem outra desculpa?

- Então me diga o que fiz.

- Não precisamos dizer, porque você vai saber em breve.

E desligou.

O túnel acendeu luzes amareladas. Comecei a andar e percebi que elas iam apagando a partir de alguns passos. Mais uma vez, eu, luzes que as vezes piscam e meus passos era minha companhia.

Eu não acredito que aqueles desgraçados entraram na minha casa. E ainda me acusa de um crime. Por que não me entregaram pra polícia? Pode ser apenas uma mentira, me pegaram, apagaram e agora estou aqui como um animal num cercado se preparando para o abate.

- Oi, tudo bem?

O Jogo do PoçoWhere stories live. Discover now