Aconselhamento Psicológico.

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Antes mesmo de abrir os olhos ele já conseguia sentir aquele sabor amargo e ao mesmo tempo almíscar, pesando em sua língua. Era quase como se fosse uma nuvem pastosa, que flutuava no céu de sua boca enquanto levava para sua mente as piores sensações. 

Então Bruno abriu os olhos e tentou encontrar o maldito despertador que gargalhava e gritava para ele. Ainda era cinco da manhã mas sua cabeça pesava e pulsava como se toda a semana já tivesse passado.

- Odeio terças-feiras! - resmungou enquanto se sentava. - Menos do que as segundas e bem mais que as quartas. - pensou enquanto coçava a cabeça e tentava desaprumar os cabelos lisos.

Então ele se levantou cambaleante e com um passo trôpego, de sono e ressaca, foi arrastando parte da coberta e do lençol. A garrafa de Vodca barata, a mesma que fizera as vezes de travesseiro, saiu rolando ruidosamente pelo chão enquanto respingava suas últimas gotas no chão do apartamento.

Qualquer um que presenciasse aquela situação ficaria impressionado pois, fora de casa, ele fazia o tipo de pessoa metódica e organizada, simpática até, que só se preocupava com a qualidade de seu trabalho e com aquilo que as pessoas faziam à sua volta. Ele na realidade, nunca pensou sobre isso, para ele a vida era fundamentada em duas coisas, se controlar perto das pessoas não era a mesma coisa que viver sozinho em seu próprio ambiente. Principalmente agora que ninguém mais dividia o seu apartamento.

Essa era a dicotomia de sua vida. No trabalho, ele era considerado por muitos como um obcecado, uma pessoa que gostava de arrumar as coisas, de deixar até mesmo as pessoas no lugar certo. Era por isso que ele trabalhava até tarde, pensavam alguns. Era por isso que ele queria resolver todos os casos que apareciam, diziam outros. Já em casa ele deixava acumular, por semanas até, caixas de pizza ou louça suja. Pilhas de roupas, livros e papéis velhos que emboloravam pelos cantos e montes que se espalhavam pelo chão.

Nadir era a única pessoa que sabia disso. E segundo ela, isso não acontecia porque ele acreditasse que as coisas tinham de ser daquele jeito. Ela teorizava que aquilo era uma tentativa inconsciente de evitar que a loucura que sentia casa, não tomasse por completo conta dele.

- Você deveria refletir sobre isso. - Resmungou e tentou imitar sua psicóloga enquanto fazia uma voz mais alta e grossa. - então, depois de espirrar urina por todo o vaso, tentou lavar as mãos e só conseguiu molhar por completo o chão já sujo do banheiro e olhando para o espelho rachado da penteadeira, tentou mais uma vez desarrumar os cabelos negros.

Seus olhos puxados pesavam mais do que o normal, então ele jogou água no rosto duas vezes tentando despertar e saiu chapinhando nas poças amarelas que escorriam pelo ladrilho em direção ao ralo.

- Acorda, acorda! - resmungava ele. Então, tal qual um porco caçador de trufas, ele se atirou em um dos montes de roupas "mais limpas", à procura de uma calça jeans e uma camiseta que estivesse menos amassada.

- Hoje você tem mais uma sessão de aconselhamento com a pequena, doce e amorosa amiga, Dra. Nadir! - falou alto jocosamente enquanto se lembrava da aparência da psicóloga da polícia. Uma profissional duas vezes mais alta, larga e musculosa do que ele.

Ruidosamente ele caiu de joelhos e começou a pescar um dos seus tênis que parecia se "esconder" debaixo da cama. Enquanto ele esticava os braços e tocava com a ponta dos dedos o velho tênis, ele deixava sua mente voar.

Aquela seria a sua segunda sessão de aconselhamento e mesmo assim ele já considerava um procedimento imbecil exigido por seu chefe. Novamente Nair iria perguntar coisas óbvias e ele responderia o que ela gostaria de ouvir para assim fechar o relatório. Ele até já repassava como seria a conversa com ela.

No escritório, ele teria de dizer bom dia a todos e então atravessar todo um corredor apertado até a pequena sala, cheia de fichas e relatórios, que ficava no fundo do depósito. Então, depois de se sentar entre os outros relatórios, folhas e mais folhas que indicavam os temores e problemas de outras pessoas, ele uma vez mais, encontraria a enorme Dra. Nair, escarafunchada em uma cadeira giratória e munida por uma enorme cabaça de café. Então ela provavelmente perguntaria com aquela voz digna de um tenor fracassado de ópera:

- Você chegou bem na hora! Como vai Sr. Bruno? Por favor sente-se e me conte como você está essa semana.

É claro que ele não contaria em detalhes sobre seus sentimentos. Um lado de sua família sempre dizia que os problemas pessoais devem ser guardados no fundo do coração. Esse adágio era tão importante quanto a principal fala que aprendeu com seu Ditchan, seu avô que sempre dizia.

- A reputação de mil anos pode ser determinada na conduta de uma hora. Então vença a si mesmo e terá vencido o seu próprio adversário!

Então pensando nisso e respirando fundo, ele responderia.

- Tudo está bem, na medida do possível. Eu só quero fazer o meu trabalho da melhor forma possível.

Ela então iria suspirar e falar novamente sobre sua atuação e responsabilidade como agente federal. Talvez, ela até tocasse novamente sobre o assunto de que fosse interessante que ele tirasse algumas férias. Férias! Será mesmo que ele teria de repetir que não estava preparado para tirar outras férias? Será que ele teria a comentar que a viagem anterior que fizera por toda as Américas já foi o suficiente para mudar sua vida pois, refletindo em retrospecto, viajar da Terra do Fogo até os grandes Lagos nos Estados Unidos permitiram que ele experimentasse e refletisse bem sobre como as pessoas são diferentes e, ao mesmo tempo, estranhamente iguais. Todas presas nos mesmos tipos de desejos, nos mesmos tipos de sonhos e pesadelos que embalam a sociedade moderna. Sonhos de sucesso e fracasso embalados em infinitos compromissos sociais que envolvem a família, o trabalho, a vida e tudo mais.

Ela com certeza suspiraria diante da sua resposta, mexeria os grandes ombros suados e cheios de sardas enquanto tomava um gole da cabaça de café quente então, mais uma vez, ela tocaria sobre o único assunto óbvio e ao mesmo tempo irritante.

- Gostaria de saber o que você pensa sobre os criminosos que estamos investigando?

Ele iria então engolir mais uma vez as palavras. Não demonstraria a raiva fria e incisiva que sempre sente contra aqueles que cometem atrocidades, principalmente aqueles maltratam outros seres humanos. Então responderia:

- Eu continuo achando que as pessoas podem ser ignorantes mas não são necessariamente más. Na minha opinião, a verdadeira maldade é um pré-requisito para aqueles que detém o verdadeiro poder e consciência de mudar as coisas.

Ela então insistiria, discutiria com ele sobre os problemas sociais e sobre o papel dos agentes federais. Tudo com a intenção de identificar se ele ainda tinha condições de sair armado e não abusar do poder que o estado lhe dava.

Ele então iria dizer que o poder corrompe e, que o mal uso dele destrói tudo aquilo que nos faz seres humanos, mas que ele estava se mantendo alerta e que iria avisar a psicóloga se sentisse que não estava bem.

É claro que ela tentaria tocar no assunto mais uma vez. Mas ele não iria falar nada mais. Principalmente porque ele estava diferente da época em que ele era apenas mais um garoto sem direção e foco. Desde que se apaixonou e começou a pensar nas possibilidades infinitas de uma vida a dois as coisas mudaram. Foi a viagem em que ele conheceu a mulher que um dia iria se tornar sua esposa. Foi logo depois da viagem que ele a perdeu.

Ele então evitaria responder e não entraria mais nesse assunto. Era doloroso demais pensar nisso.

O relógio mostrava seis horas da manhã quando o telefone começou a tocar. Quem seria aquela hora? Deve ser engano, ninguém me liga aquele hora.

Ainda olhando para o telefone, ele terminou de se trocar. Ele amarrava o tênis enquanto ignorava o toque do telefone, torcendo para que a pessoa do outro lado desistisse.

Então, mesmo o toque constante e monótono reabriu algumas das memórias enterradas. E sua mente começou a viajar para tempos mais felizes.

Na beira do abismo.Onde histórias criam vida. Descubra agora