Voltando pra casa - Uma hora antes do acidente.

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João estava muito cansado porque mais uma vez ele teve de sair correndo na sexta feira pra visitar a sua sogra. Era sempre assim, ela insistia e choramingava e isso acabava convencendo sua esposa.

Não importava o quanto reclamasse, sempre suas lamúrias conseguiam fazer com que eles pegassem o carro, atravessassem todo o estado para então, passar parte do Sábado e do Domingo com ela.

Sempre era aquela correria. Mesmo cansado ele tinha de sair do trabalho, pegar suas filhas na escola e depois a esposa no metrô mais perto de casa. Logo depois ele abastecia o carro e viajava toda a sexta a noite e parte do sábado para assim chegar, praticamente morto de cansaço, naquela pequena cidade do interior.

Lá sua sogra iria mimar suas filhas, enchendo as duas de doces, tortas e sucos enquanto aproveitava a oportunidade para reclamar da criação que suas netas recebiam em uma cidade, perigosa e desorganizada, como São Paulo.

É claro que ela nunca admitiria as vantagens de se morar em uma cidade grande, como professora aposentada à mais de quinze anos a sua única opinião é que eles estariam muito melhor se voltassem a morar no interior.

Quem sabe na casa que estavam alugando bem próximo da dela. Essa era sempre a melhor opção!

É claro que essa opinião não levava em conta a escola das meninas, o seu trabalho como funcionário público ou mesmo o empreendimento de sua filha, o pequeno restaurante que havia ganho recentemente o prêmio de um dos cem melhores restaurantes de comida regional da cidade.

- Aff, como estou quebrado! - resmungou ele para a esposa. - Já estamos no final de domingo e ainda preciso rodar um monte antes de chegar em casa. Já são o que? Sete horas da noite e só agora consegui entrar na Castelo?

Pelo menos a estrada está bem sinalizada e o asfalto liso. Então acelerou um pouco mais como a isso o aproximasse do seu destino.

Do retrovisor ele via que meninas já dormiam agarradas com seus bichinhos de pelúcia no banco de trás. Enquanto isso, a esposa dormitava, enquanto escutavam um programa de entrevistas que eles haviam gravado no pendrive.

- Malditos políticos! - João amaldiçoou e resmungou quando escutou uma passagem em que comentavam sobre os restaurantes na Europa. - Eles e sua política tacanha são os responsáveis pela condição difícil que passamos para manter a empresa.

E foi se irritando ainda mais quando a entrevista falou justamente sobre isso. Sobre como tudo no Brasil era mais difícil, fazendo assim que os lucros virassem fumaça.

- E por causa disso, eu tenho de escutar a minha sogra me enchendo o saco sobre os riscos que estamos correndo. Muito obrigado! - resmungou mais uma vez baixinho.

Mas tudo bem, continuou pensando, amanhã teremos o lançamento de um cardápio novo e vamos receber um grande número de clientes. Especialmente depois da última notícia que saiu no jornal falando sobre o restaurante.

Então, enquanto pensava no cuscuz de tapioca da sua esposa, uma chuva leve começou a cair na estrada. Como ele estava a mais de 120 km por hora, só pode resmungar antes de começar a diminuir.

Um caminhão buzinou alto quando, apressado, o ultrapassou. Antes de sumir na chuva que aumentava, João ainda pode ler a mensagem escrita na traseira do caminhão que dizia "Non ducor, duco. - Não sou conduzido, conduzo".

- Droga! Isso vai atrasar a nossa chegada em casa. - Disse sua esposa com os olhos semicerrados. - Queria tanto a nossa cama!

Quase na mesma hora suas filhas abriram os olhos e em conjunto começaram a reclamar e a pedir por banheiro e comida. Sua esposa então abriu os olhos por completo e se virou para olhar as meninas, dizendo.

- Adoraria parar um pouco também. Daqui a pouco pegaremos aquele trânsito pesado próximo de São Paulo e não quero aguentar essas duas pedindo por comida a cada minuto. Está bem pra você? - Então ela a virou e sorriu.

João então pensou que era só por isso que ele arriscava dirigir a noite, percorrendo quilômetros de estrada ruim para ver a sogra e ainda mais um tanto de volta, antes de enfrentar uma segunda feira. Era tudo por causa daquele sorriso sincero, e ao mesmo tempo sensual, que ele tanto adorava.

- Tudo bem amor! - Replicou em tom brincalhão. - Vamos dar comida para esses passarinhos.

A chuva pareceu aumentar ainda mais e o vento, baixo e compacto, atingia as árvores ao lado da estrada com uma força súbita e selvagem.

João dirigiu com dificuldade por mais alguns quilômetros até parar em um posto chamado Besourão. Ele não gostava muito do atendimento mas, suas filhas adoravam os sanduíches e os sucos de lá. Então, ele deixava passar. Podia não ser o melhor posto, mas era o mais próximo e mais seguro pensou.

Eles estavam no quilômetro 48 e haviam acabado de passar a entrada para a cidade de Araçariguama e ele ainda teria de dirigir mais uma hora até chegar na entrada de São Paulo.

A chuva no momento havia triplicado de força e o vento estava tão forte que os grandes barris de metal que o posto usava como lixo eram arrastados pela pista.

Os carros estavam apinhados em volta do restaurante. Todos tentavam buscar proteção e um lugar para descansar. Ele mesmo demorou uns quinze minutos até conseguir estacionar ao longe, fazendo com que todos tivessem de descer e correr na chuva, até o restaurante.

Quando estavam acabando de comer, o vento começou a bater com força no telhado de zinco. Mas só quando suas filhas começaram a choramingar por causa do barulho é que João resolveu retomar a viagem.

Mesmo com a chuva, o movimento de carros ainda estava fluindo e ele não queria arriscar ficar preso em um lugar como aquele.

Correram de volta e depois de se enxugarem, retornaram para a estrada.

Mesmo com o limpador ligado no máximo João só conseguia enxergar o carro da frente. A chuva já estava diminuindo, mas agora uma neblina pesada cobria todo o caminho.

A parte boa é que, sem chuva, sua esposa e filhas voltaram a dormir.E segundo seus celular, já haviam se passado cinquenta minutos ou seja, logo ele encontraria aquela fila gigante de carros que sempre se formava na entrada da cidade.

Sem nenhuma outra opção, João prestava atenção na estrada e brincava com a imagem de que a próxima receita de sua esposa deveria ser de sogra frita ou ensopada. Era o que ela merecia por fazê-los passar por tudo isso!

Por um minuto ele desviou os olhos da estrada para ver suas filhas, quando olhou novamente ele notou a passagem de uma placa que indicava a entrada para a cidade de Carapicuíba. Que bom, finalmente eles estavam chegando!

A neblina agora era tão pesada que ele não conseguia enxergar nem carro da frente. Por causa disso ele diminuiu um pouco mais a velocidade.

Foi nesse momento que ele sentiu um leve declive na estrada.

- Estranho. Essa pista parece estar rachada. - Comentou em voz alta. - Nunca vi isso por aqui. - Sua esposa abriu os olhos e se debruçou no painel tentando ver com mais detalhes.

Nesse momento ele sentiu o carro acelerar e tentou frear uma vez, mas não conseguiu. A estrada agora era uma única rachadura com uma inclinação assustadora.

A imagem de uma ponte quebrada passou pela cabeça de João e ele gritou.

Então seu carro, como muitos outros, foi engolido subitamente pela escuridão de uma imensa cratera que se abria a centenas de metros.

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NOTA DO AUTOR: Já disseram que não existe nada mais assustador do que a própria vida.

Eu devo concordar, dirigir a noite sempre é complicado, ainda mais quando tiram a estrada de você! 

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