seis; verdades e (des)verdades
Impaciente com a extensa demora do elevador antiquado, que demorava minutos em abrir as portas de acesso, carrego freneticamente nos botões luminosos, implorando silenciosamente pela sua chegada. Suspiro pesadamente, louvando a todos os mecanismos do prédio em finalmente ter aberto as portas do elevador. De cabeça baixa e de olhos entreabertos, conseguia pressentir todos os músculos dos meu corpo implorarem por um longo contacto com o colchão confortável e insubstituível. Ciente de os primeiros raios de sol estivem a transmitir os primeiros sinais, não poderia encarar de melhor forma a carteira recheada com o pagamento adiantado após o turno imparável.
Retiro as chaves transportadas por um porta-chaves de um país visitado enquanto ainda vivia dentro das quatro paredes com uma família ideal e completa, abrindo forçadamente a porta aparentemente pesadíssima. Piso o chão, ouvindo o mesmo ranger devido ao uso excessivo e anos maciços. Porém, a madeira puída e barulhenta não era a única coisa que estava a calcar, pois debaixo das minhas botas encontravam-se vidros partidos e manchas pelo tapete que a minha progenitora tanto venerava. O odor penetrava pelas minhas narinas e mesmo com meu cansaço prestes a render-se, o meu instinto despertara todos os meus sentidos ao reconhecer as evidências fatais.
– Mãe! MÃE! – exclamo, correndo num ápice até a um dos quartos.
Todavia, não fora necessário recorrer às escadas do sótão para embater com o olhar num dos meus piores pesadelos. Sendo a minha figura estática acompanhada pela minha respiração ofegante as únicas coisas audíveis pelas quatro paredes revestidas de azulejo aprimorado, era incapaz de encarar a realidade. Queria negá-la, amachucá-la como se fosse um mero e insignificante papel e atirá-lo, pretender que nunca o vira. Era impossível reverter esta situação. Exasperado com as falhas das minhas contantes tentativas em evitar o óbvio, esfrego as minhas mãos na minha face, carregando cuidadosamente o corpo imóvel de Isa, completamente dominado com o seu maior inimigo, vício insaciável, sinónimo de perda.
– Calum... – Isadora murmura, remexendo-se nas mantas de lã que colocara sobre o seu tronco.
– Eu tentei, eu avisei-te! – aponto, sendo incapaz de inquietar os meus passos descoordenados que percorriam os cantos do quarto, vezes sem conta. – Será agora, que o próprio filho cuida da sua mãe dias depois de dias, horas a fio, coisa que tu nunca tentaste fazer durante a minha adolescência!
Acolhido com os raios de sol que pairavam sobre as ruas ainda pouco movimentadas, recorria há minha única escapatória e fonte de calma. Tons melancólicos e suaves, tonalidades azuis e amareladas que revestiam todo a paisagem, ruas abandonadas, apartamentos de estores corridos e poucos aventureiros nos cubículos a quem denominavam de varadas. Caso tivesse a oportunidade de escolher um dia, uma hora, um momento que pudesse eliminar completamente da minha memória seria sem quaisquer dúvidas, o cenário a que assistira. No dia em os meus cabelos caíam sobre a face escondida entre os meus joelhos ouvindo a conversa do meu pai quando abandonara por completo Veneza e os seus encantos, nunca percebera a razão por enfrentar o seu orgulho e arrumar todos os dilemas e confrontos dentro de uma mala de viagem. Agora entendia, vagamente, na verdade.
Com os punhos firmes nas maçanetas da mota, a brisa gelada e fortíssima que embatia contra o meu corpo revestido com o casaco ousado, acalmava gradualmente o meu estado de espírito à medida que prolongava o passeio. Contudo, nem mesmo com todos os meus esforços em permanecer lúcido e desperto não foram o suficiente para percorrer mais um quilómetro que fosse, sem ter de encostar à berma do passeio. Nada parecia colaborar. Os ventos cada vez mais impetuosos impossibilitavam o mínimo conforto, levando-me a assentar o meu corpo no passeio enodoado enquanto despenteava os meus cabelos negros.
– Faz acontecer. – a sua voz melodiosa soa entre os arbustos aprimorados, sentando-se ao meu lado. – Choca tudo e todos.
– A tua impertinência e descaramento são o suficiente para chocar alguém. – admito, sem ousar mirar a sua figura estática.
– Tal como digo, eu faço acontecer. – ela repete, posicionando as suas mãos trémulas nos seus joelhos expostos devido às suas calças rasgadas. – A forma como o vento corre nesta madrugada não me dá outra opção.
Indignado, ergo a cabeça atento as suas feições frágeis e pávidas. Por momentos, as suas palavras descritas com uma caligrafia alinhada fizeram sentido na minha cabeça, tal como as folhas secas desaparecerem consoante a direção do vento e permanecem na sua ausência, ela transmitira a sua mensagem sem pronunciar uma única sílaba. Mesmo com a luz fraca e débil dos candeeiros locais, era possível denotar os seus olhos lacrimejantes e redondos, seguidos com os lábios sem a sua cor habitual forte e marcante. As suas mãos trémulas seguravam firmemente as alças da mochila que carregava nos seus ombros, demonstrando-se preparada para percorrer o seu caminho incógnito. Não entendera os seus objetivos ou planos mesmo que convivesse com a sua alma um dia por semana durante o árduo mês que passara. Ela sempre se mantivera fiel aos seus segredos, substituindo palavras por mensagens ainda mais indecifráveis que a sua mente. Olhares sempre foram mais intimidantes do que palavras, de facto.
– Nem mesmo com a tua própria personalidade consegues lidar... – aponto, sendo surpreendido com a sua atitude repentina.
– Isto é o que sou, Calum. – Rya declara, cruzando os braços no seu casaco de malha. – Ninguém é obrigado a venerar, muito menos entender.
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Overtime · cth
Fanfiction{book 3} ❝Nós estávamos fora de tempo. Em geral, na verdade. Nem mesmo os relógios de pulso que quebravam os nossos momentos lúcidos recorriam à mesma hora; uns segundos a mais, uns minutos a menos. Nem mesmo os batimentos cardíacos que emitiam as...