xiv.

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catorze; perdido

Aparentemente, tudo era azul. As tonalidades azuis que revistam o céu obstruído com as vagas nuvens, a água límpida e nítida que corria na pequena fonte alusiva à estátua de uma figura inesquecível. Uma tranquilidade, serenidade e harmonia era tudo o que as cores presentes na paisagem extraordinária conseguiam transmitir. Até mesmo a camisa que envergara à última hora, após percorrer todos os cantos e recantos dos armários antiquados possuía a mesma tonalidade. Surpreendentemente, as ruas alcatroadas encontravam-se movimentadas; com a presença de carros em todos os lugares de estacionamento, lojas preenchidas com grupos e alguns solitários, passeios impossíveis de frequentar sem ter de contornar algo ou alguém. Como se realmente, estivessem à espera que algum acontecimento provocasse uma reviravolta nas suas rotinas repetitivas e fatigantes. Poderia adotar esse critério, caso soubesse decifrar o verdadeiro porquê do pedido revelador da noite anterior.

Sacudo novamente as mangas da camisa aprimorada, posicionando o capacete no antebraço. Por alguma razão indefinida, os meus passos vagarosos e descoordenados faziam com que a minha ansiedade aumentasse gradualmente. Inalo a brisa fresca da manhã, usufruindo dos últimos momentos para retocar os meus cabelos negros despenteados numa das vitrinas da rua tão reconhecida pelo meu olhar. Não queria acreditar no que os meus olhos analisavam. Estaria enganado no estabelecimento que julgara tão bem conhecer? Ou estaria prestes a acordar sobressaltado de um sono profundo?

Perante a minha figura, as vitrinas antigamente cobertas de jornais antigos tinham sido retiradas e agora umas extensas janelas cristalinas exibiam um cenário imprevisível; o placar que antigamente se julgara impossível ler o nome do lote comunitário devido às suas luzes apagadas, agora transmitiam uma luminosidade forte e marcante. Abismado, não acreditava nas minhas próprias conclusões, comprovadas à luz do dia. Num ato subtil e de bravura, apresso os meus passos em direção à entrada do lote, pressionado firmemente a maçaneta da porta.

– Rya...?

Encosto a porta pesadíssima, espreitando pelas instalações, à procura da sua voz melodiosa que guiasse à sua presença divinal. Porém, antes que fosse possível proferir umas simples palavras como o seu nome, denoto as diferenças ainda mais marcantes e visíveis do que as exteriores. De momento, não havia uma única caixa de cartão assente no chão de linóleo, paredes vazias, papéis soltos, cadeiras desarrumadas ou vasos partidos com plantas muchas. Tudo mudara. As paredes estavam decoradas com quadros com assinaturas do seu avô, obras inacabadas todavia, brilhantes, distribuídas perfeitamente pelo curto espaço, um extenso tapete vermelho estendido sob as minhas botas e uma música pacífica que tocava como fundo.

– Confesso que estou um pouco...nervosa? – ela murmura, desviando os seus longos cabelos que caíam sob a sua face angelical. – É a primeira vez que abro as portas ao público desde o falecimento do meu avô.

– Relaxa, vai tudo correr como pretendes. – conforto, ajeitando a alça do seu vestido recaída no seu ombro descoberto. – Vejo que ainda não desfizeste algumas caixas.

– Exato! – a rapariga replica, escondendo o seu rosto com as suas pequenas mãos recheadas de anéis nos seus dedos finos. – Nem me lembres que falta menos de meia hora para a apresentação e ainda não organizei o que pretendia.

– Estou aqui para ajudar, ok?

– Realmente vieste mais cedo do que a hora prevista. – ela aponta para o seu relógio, colocando-o de modo a verificar as horas com o meu relógio de pulso que emitia horas completamente diferentes.

– Realmente, nós estamos fora de tempo.

Minutos contados, resmungos, murmúrios desagradáveis e decisões imprevistas. Trinta minutos onde corríamos contra o tempo, mesmo sabendo que esse era imbatível. Mil e oitocentos segundos para recompor os mínimos pormenores para tudo ficasse como deveria ser, perfeito. Afinal, era o seu dia que estávamos a festejar. Como se finalmente, ela encerasse um dos seus capítulos mais temidos. Todavia, o melhor dos detalhes era que a minha presença fazia parte dessa sua nova etapa.

De braços cruzados sob o peito, encarava as feições desconhecidas de quem entrava no espaço, curiosas com as obras expostas. Umas, meramente encantadas com os petiscos expostos no vasto balcão e mármore. Outras, de mãos pousadas nos seus queixos analisando as diversas tonalidades e pinceladas que originavam retratos inacreditáveis. Contudo, a verdade arte que observava não era nada menos, nada mais, do que a figura de Rya. Os seus cabelos suaves e arranjados, o vestido branquíssimo que dava um belíssimo contraste com a sua pele morena, os colares simbólicos que utilizava no seu pescoço e a forma como os seus lábios formavam um sorriso inibido que demonstrava a verdadeira arte. Ela.

– Quem diria que um verdadeiro amante de cerveja barata se tornasse um adepto de champanhe! – Isaac empurra levemente o meu ombro, fazendo-me gargalhar com a sua confissão.

– E o exame de literatura? – inquiro, denotando nos passos sublimes da jovem rapariga que avisava o aglomerado de pessoas para se aproximarem para assistirem a parte final da exposição.

– Há coisas que simplesmente não sincronizam! – ele exclama, saciado com o líquido presente no seu copo. – Como por exemplo, a minha pessoa e literatura.

– Aproximem-se por favor! – Rya avisa os grupos, encaminhando-se para a parede coberta por um pano cinzento que encobria a sua verdadeira parte da exposição. – Antes de revelar o meu verdadeiro trabalho, quero tu Calum, imagines o que está por detrás deste pano.

Hesitante porém, surpreso com a sua afirmação, cerro as pálpebras dos meus olhos repesando em tudo o que surgia na minha mente. Planos indefinidos, rotas imprevisíveis, conversas reveladoras, pensamentos confusos, palavras exasperadas, fotografias aleatórias, acordes desafinados, os seus lábios macios, as primeiras horas de trabalho exaustivo, depósitos vazios, garagens desafiadoras e o momento em que pousei as malas em frente à escola secundária. Tudo. Ou nada. Tudo o que passava na minha mente incluía a sua presença, a sua imprevisibilidade.

– Nós. – declaro, mirando as suas mãos que largavam o pano fino. – Vejo-nos juntos.

– Não existe um «nós», Calum.

Contrariando a sua declaração, uma vasta parede revestida de fotografias nossas e de paisagens durante os dias em que ambos partíramos em viagem estavam expostas na parede cinzenta. Fotografias suas, com os seus avós mas, principalmente nossas. Até mesmo algumas que desconfiava a sua existência. Reconhecera de imediato a minha figura em frente do estabelecimento escolar onde observara pela primeira vez a sua face. Como é que poderia negar a existência? A nossa existência? Absorvido pelo silêncio do público que aguardava por o comentário de alguém, afasto Isaac que colocara a mão no meu ombro, cheio de bravura para admitir as maiores atrocidades.

– Deixas-me perdido... – revelo, ainda estupefacto com a verdadeira reviravolta que estava a presenciar.

– Encontra-te!

– Perdido em ti, Rya! – aponto, surpreendido com a ênfase e sinceridade das minhas afirmações ao ser literalmente humilhado em frente a pessoas que desconhecia totalmente. – Perdido na tua mente, perdido nas tuas falas, perdido nas tuas ideias, perdido nos teus lábios, perdido no teu corpo, perdido em tudo!

– Não, não estás Calum. – ela reforça, como se tivesse ultrapassado a sua linha de conforto. – Tu não sabes o que estás a dizer.

– Foste tu que disseste que as fotografias não mentem...há um momento exato, um sentimento capturado. – profiro, quase rendido à frieza e crueldade das suas declarações, suspirando uma última confissão. – E lá estavas tu, com tudo aquilo que desejei.

Overtime · cthOnde histórias criam vida. Descubra agora